quinta-feira, 31 de março de 2016

LINA - FILHA DE PÃ
romance

Por Joaquim A. Rocha

desenho de Rui Nunes

4.º Capítulo


     Os meses foram fluindo. Lina já dominava todo o serviço, o magistrado contratara uma jornaleira, a Jesufina, para cuidar da horta, que agora estava um primor, «um brinquinho», como ele gostava de dizer. Tinha uma grande variedade hortícola. Quando as pessoas passeavam na Avenida olhavam para a horta do juiz e comentavam: «Que linda está! Aquelas couves, o tomate, os grelos, os pimentos verdes e vermelhos, as cebolas, até feijão verde tem!» Toda a gente admirava a horta do juiz.
    A Jesufina, aparentemente débil, esguia, mas rija como uma rocha milenar, nos seus quarenta e tal anos, tinha um orgulho tremendo naquela horta, tratava-a com esmero, com carinho, como se fora o filho que lhe morrera anos atrás, mas havia um senão: ganhara um medo colossal, danado, ao canzarrão. O bicho não simpatizava com ela e por isso, quando a via, ladrava-lhe sempre, mostrando-lhe uns dentes enormes e aguçados, prontos a morder, a estriçar aquele corpo. «Maldito cão» - resmungava ela.

**

     Lina tinha quase dezasseis anos. Os seus seios cresceram, as suas ancas já davam nas vistas. Os rapazes da Vila já andavam atrás dela, mas ouviam sempre a mesma resposta:

- Se se meterem comigo, ou me fizerem mal, digo ao Senhor Doutor Juiz.

     Eles temiam a autoridade. Julgavam que um juiz era uma espécie de rei em regime absolutista, um déspota – podia fazer tudo aquilo que quisesse: prendê-los, torturá-los, até matá-los! Afastavam-se dela, despeitados, dizendo-lhe:

- Pensas que és boa, que és importante, só por seres criada dum Senhor Doutor Juiz, mas há melhor do que tu. A nós não faltam raparigas. Adeus!
    
     Ela ficava absorta, afinal de contas era da mesma classe, gente pobre, que nunca teriam nada de sua legítima. Alguns até eram rapazes bonitos, empregados de balcão, aprendizes nas oficinas, e nos bailes sabiam dançar como ninguém. No entanto, ainda era nova para namorar, embora vontade não lhe faltasse, apetecia-lhe ser beijada, às escondidas, mas o patrão podia não querer que ela namoriscasse, até a podia despedir, e por outro lado ainda não esquecera os conselhos da mãe. Aquelas palavras sábias: «tem juízo, rapariga, não te deixes seduzir por um peralta, um malandreco da Vila», ainda não as esquecera.
     Nessa noite o juiz andava agitado. A namorada estava doente, tuberculosa, bebera demasiado vinagre para emagrecer, fizera dieta sem quaisquer regras, não aceitava ser gordinha, nédia, e agora fora internada num Sanatório, com poucas esperanças de melhoras. Já tinham tido contactos íntimos, embora irregulares, por causa dos mexericos, dos preconceitos seculares, mas agora ficara desarmado. Quando é que voltaria a vê-la? O mais certo era ela morrer. Teria que arranjar outra, mas como aquela não seria fácil. Filha de gente fidalga, rica, filha única, futura herdeira daqueles bens todos. Onde arranjaria outra igual? Faltava-lhe quase um ano para deixar Melcarte, depois iria para o centro ou sul do país, encontraria novas amizades, quem sabe, outros amores. Tinha 34 anos de idade, era saudável, boa figura, não faltariam pretendentes. Devia esperar pacientemente. Não lhe apetecia deitar-se. Foi até à sala, retirou um livro da estante, um romance de Eça de Queirós, O Primo Basílio, e começou a ler. Lina saiu da cozinha e foi-se despedir dele.

- Até amanhã, Senhor Doutor. Se precisar de alguma coisa é só pedir. Estou sempre às ordens.             

     Ele chamou-a, olhou para ela como antes nunca olhara, mirou-a dos pés à cabeça, e diz-lhe:

- Tenho andado tão ocupado que nem reparo em ti. Estás uma linda catraia. Deste um enorme pulo ultimamente.
- É bondade do Senhor Doutor. Eu não presto para nada. Sou pequenina e feia.
- Não te menosprezes. Chega-te mais para aqui.

     Pegou-lhe nas mãos, branquinhas, suaves, levou-as aos lábios, e pediu-lhe, com doçura:

- Senta-te aqui, nas minhas pernas; estou a precisar de carinhos. Tive um grande desgosto.

     Ela ficou muito corada, o sangue subiu-lhe ao cérebro, não sabia como reagir. Ele era o seu patrão e agora queria ser o seu amante. Que futuro seria o dela? Avançou um pouco, meteu-se entre aquelas pernas grandes, poderosas, e solicitou-lhe com meiguice:

- Não me magoe; eu nunca fui de ninguém, sou virgem.

     Ele estendeu os seus longos braços, abraçou-a com ternura, beijou-lhe os lábios, mexeu-lhe nos seios, rijos, redondinhos, com uns bicos entre o roxo e o vermelho, os chamados mamilos, quais cerejas em Maio, a explodirem de cor, depois levanta-se lentamente, pega nela como se fosse uma pluma e leva-a para a cama. Ela despiu-se, ficando completamente nua, e ele não resistiu àquele corpo intacto, pequeno mas bem torneado. Nem sequer pensou nas consequências. Cada coisa a seu tempo. Agora era um momento de gozo, de prazer infindo, de fantasias incomensuráveis. Estiveram entrelaçados quase toda a noite. Beijos mil, ternuras sem fim, palavras meigas.

- Meu amor: és a mais linda de todas as mulheres que já possuí. És um botãozinho de rosa!
- Ai Senhor Doutor: nunca imaginara que fosse tão bom. Serei sempre de vossemecê. Nunca hei-de querer outro homem na minha vida.

     E beijava-o ardentemente. Ardia em febre.

- Minha querida, jamais te deixarei. (E beijava-a com doçura, com meiguice, com paixão…)


     E depois de mil promessas, adormeceram profundamente. // continua...

terça-feira, 29 de março de 2016

DICIONÁRIO ENCICLOPÉDICO DE MELGAÇO

Por Joaquim A. Rocha


cartas de um castrejo

15.ª - «Senhor Redactor: (…) em quase nada havemos sido atendidos nas nossas justas reclamações. (…) Enquanto ao humilde castrejo der guarida nas colunas do “Correio de Melgaço” não desanimaremos. Combater, combater pelas regalias da nossa querida terra, a ver se um dia a vemos alçapremada ao lugar a que tem jus, é o nosso lema. Por isto e porque estamos certos de que a nossa paróquia – que conta entre os seus membros verdadeiras dedicações (pois cá os castrejos só por uma escorregadela é que vão à urna arrebanhados), não descuidará a nossa lembrança da última carta, preparando uma representação à Câmara Municipal de Melgaço, pedindo as escolas a que tem direito, segundo a lei vigente, apresentando com recomendação infalível os recenseamentos escolares. Não trepidem: no próximo domingo, se não pela semana, em sessão extraordinária, tratem com carinho do assunto magno da instrução na nossa terra, e terão as bênçãos dos coevos e dos vindouros. Não duvidamos de que os membros da nossa paróquia aproveitarão o nosso alvitre, porque temos a plena certeza de que os nossos queridos conterrâneos não escolheram para lugares de tão alta responsabilidade pessoas que lhes não mereçam absoluta confiança. E se não emendem-se, de hoje para sempre, conservando a sua independência na liberdade de votar e, muito especialmente, nas colectividades administrativas. Se não os conhecerem, não os elejam, ainda que lhes peça o paizinho. // Não nos consta que o mais pequenino remédio fosse aplicado à nossa enfermidade, produzida pelo chefe do posto fiscal, cá da freguesia. Ao castrejo foram-lhe aplicados direitos e multa, por transgressão, em que teve como Cireneu (*) o tal chefe de posto. (…) Nós não queremos que este fique sem pão para si e para os filhos, nós não lhe queremos, mesmo, mal nenhum; mas julgamos que, para haver igualdade na justiça, seria de extrema necessidade deslocar, ao menos, o chefe do posto, pagando com o deslocamento o que o castrejo, injustamente em parte, pagou em dinheirinho!.. Diz-lho, convicto… Castro Laboreiro, 12/5/1916.»

     /// (*) refere-se a Simão de Cirene, que ajudou Jesus a carregar o lenho, segundo a bíblia (novo testamento).

domingo, 27 de março de 2016

DICIONÁRIO ENCICLOPÉDICO DE MELGAÇO

Por Joaquim A. Rocha




CASA E QUINTA DA SERRA


     Esta é uma das casas mais importantes de Melgaço, não pela sua arquitetura mas sim pela sua história. Foi construída junto da pequena estrada que vai de Prado a Paderne. É casa de fidalgos e tem capela, em honra de São Caetano. Embora não esteja situada no centro do lugar da Serra, mas sim acima (Cima de Serra – ver “O Meu Livro das Gerações Melgacenses”, página 614), a sua quinta («um dos prazos da insigne Colegiada de Santo Estêvão de Valença») abrangia esse lugar da freguesia de Prado. A tal quinta da Serra foi adquirida no século XVI pelo casal Ana de Castro de Sousa e Magalhães (filha de Lopo de Castro de Azevedo, 1.º senhor da Casa e Quinta do Fecho, Rouças, e de Leonor Veloso Bacelar de Sousa e Magalhães, e neta de Fernão de Castro, alcaide-mor de Melgaço), e João da Lama Y Puga, fidalgo galego. O instituidor do vínculo de morgadio, iniciado a 3/2/1715, foi Pedro de Sousa Gama, capitão-mor das ordenanças, descendente daquele casal, casado em segundas núpcias com Maria Teresa de Sousa Salgado, nascido no século XVII e cuja morte se verificou a 13/6/1749. Escreveu Aldomar Rodrigues Soares, mais conhecido por “Mário de Prado”: «… o capitão-mor Pedro de Sousa Gama, quando mandou levantar aquele enorme casarão, que ainda hoje admiramos, lá tinha as suas razões…» (Padre Júlio Vaz Apresenta Mário, página 142). // Uma das figuras mais ilustres desta Casa foi o major Luís de Sousa Gama, governador da Praça de Melgaço entre 1839 e 1870, falecido em 1871, do qual fala longamente o Dr. Augusto César Esteves, no seu “Melgaço e as Invasões Francesas” e em «As Minhas Gerações Melgacenses». Um dos últimos representantes dessa Casa foi Herculano Arsénio Gomes Pinheiro (1898-1972), chefe da Secretaria Municipal de Melgaço. / No final do século XX a Casa e Quinta da Serra foi vendida à família Enes, da freguesia da Gave. (Consultar também “Padre Júlio Apresenta Mário”, p.p. 141/2).  

sexta-feira, 25 de março de 2016





O EMBARQUE

     Eram três horas da tarde. Henrique, sentado na esplanada, espera o seu grande amigo Cândido. Sabe que a história ainda está no princípio e a parte mais importante, passada em África, ainda está por contar. Quer saber tudo em pormenor.
     Os ex-combatentes não publicaram, até essa altura, absolutamente nada sobre a guerra colonial, uns por não saberem escrever, outros, quem sabe, por não quererem falar de coisas tristes, de acontecimentos que os marcaram negativamente para toda a vida. Era um privilégio ouvir da boca de um ex-soldado uma narração completa sobre essa satânica guerra que tantos mortos e feridos provocara.
     Por fim chega o nosso Cândido. O amigo, depois de o cumprimentar efusivamente, dispara à queima-roupa:

- Ainda se lembra do dia da partida?
- Recordo-me tão bem! Como se todos os cronómetros do planeta tivessem parado! Ali, naquele infausto dia, naquele local. Vinte de Janeiro de 1966. Cais do Conde de Óbidos. Manhã cedo. O barco estava à nossa espera… Chamava-se Uíge e era gigantesco, semelhante à goela de um monstro que nos queria devorar. Esperava os “mártires da pátria”.
      Eu, que odiava toda e qualquer violência, encontrava-me naquele sítio no papel de belígero para tomar parte activa na contenda! Para ir lutar contra indivíduos que defendiam a autonomia e a independência da sua nação, tal como os portugueses o fizeram no tempo de Dom Afonso Henriques, Dom João I e Dom João IV.

     Henrique, que bebia sofregamente todas as palavras do amigo, interrompe-o a fim de lhe colocar a seguinte questão:

- E no princípio do século XIX, aquando das Invasões Francesas, os portugueses não lutaram, também, pela sua independência?

     Cândido meditou um pouco sobre o assunto, não desejava dar uma resposta precipitada, a História era uma coisa muito séria, merecia todo o respeito. Por fim disse:

- Sim, é verdade. Governava então a França o célebre Napoleão Bonaparte, que andava às turras com a Inglaterra, país nosso aliado desde o tempo de Fernando I. O imperador francês deu ordens a Portugal para não permitir que os barcos ingleses entrassem em portos lusos, mas o regente (futuro D. João VI), que se encontrava no Brasil (a Corte deslocara-se para lá pouco tempo antes das invasões francesas) não acatou tal ordem. Bonaparte manda invadir por três vezes Portugal, mas com a ajuda dos ingleses lá nos livramos de tal gente.
         
     Henrique ouviu tudo com atenção, mas não concordava com uma coisa:

- Há quem afirme que a ida da Corte para o Brasil se justifica plenamente!

     Cândido, democrata por excelência, não contesta essa ideia:

- É polémica essa asserção; é certo que a rainha D. Maria I estava muito débil, já não decidia nada, e o seu filho, futuro rei, não era, segundo dizem, homem de grandes rasgos. Se têm ficado prisioneiros dos franceses não seria bom para eles, nobreza, mas para o país certamente seria melhor, pois os franceses teriam desenvolvido Portugal, ao contrário dos reis que nada fizeram. Na primeira metade do século XIX não havia indústria, nem transportes, o comércio era insignificante, o analfabetismo rondava os 90%.

     Henrique tudo escutava. Gostava de História, sobretudo a de Portugal. Para alimentar a conversa, atirou com mais uma acha para a fogueira:

- E as colónias? Tão ricas, e não produziam nada?
     Cândido, depois de ponderar a resposta, afirma categoricamente:

- Há um lapso na História de Portugal que carece de emenda: os portugueses do século XV não foram, em princípio, conquistar ou descobrir terras, pois a que tinham chegava bem para a população dessa altura, bastante reduzida, mas sim procurar, através dos oceanos, as fontes, as origens, dos artigos necessários ao consumo da nobreza e da alta burguesia, as famosas especiarias, a fim de deixarem, desse modo, de estar dependentes dos mercados venezianos e de outros, que os compravam ao oriente e os vendiam na Europa a preços exorbitantes. Além disso, iam alargando o mercado para os nossos próprios produtos.
- E dilatar a fé… acrescenta Henrique.
- A fé? Por detrás dela há sempre razões económicas, não te esqueças. O infante Dom Henrique, Dom João II, Dom Manuel I, tentaram conciliar ambas. Por outro lado, os mandões da igreja católica eram quase todos nobres, filhos do rei ou do duque, enfim, poderosos. Não te lembras que depois da morte de D. Sebastião foram buscar o cardeal para ser rei?!
- É verdade. Havia uma grande ligação entre a Igreja e o Estado. A 1.ª República acabou com essa promiscuidade, mas Salazar voltou a pôr tudo como dantes.
- Amigo Rique: quando os portugueses chegaram a África, à Ásia, à América, a todo o lado, essas regiões já estavam habitadas, salvo as ilhas de Cabo Verde que, devido às suas condições climatéricas e à sua pequena dimensão, não atraíam quem quer que fosse para aí viver: ninguém as cobiçava.

     E empolgado prossegue:

        Em quase todas as regiões contactadas pelos portugueses havia um mínimo de organização: tinham um Estado, embora rudimentar e tribal (como esquecer Gungunhana, imperador dos vátuas? Os portugueses obrigaram o desgraçado a colocar-se de joelhos e depois trouxeram-no para Portugal, tendo morrido, já no século XX, nos Açores), formavam, ou constituíam, uma nação. É certo que muitos se guerreavam entre si, alimentavam ódios milenários, mas o que se vê hoje no mundo dito civilizado?     

     Henrique estava arrebatado com a conversa. Como repto, lançou a pergunta:

- Não acha que esses povos se identificaram com os portugueses?

     Cândido parece ter ficado desarmado perante aquela pergunta. No entanto, e senhor de um pensamento consistente, respondeu:

- O que me perguntas é pertinente, mas quanto a mim esses povos aceitaram bem os lusos como comerciantes e não como dominadores. Resistiram quando os nossos quiseram ir além do que permitia a hospitalidade. Meu caro amigo: lê, se ainda não o fizeste, o maravilhoso livro de Fernão Mendes Pinto, com o título «Peregrinação». Nele se descreve, com certa minúcia, o deambular dos nossos antepassados por terras da Ásia, e como eles foram vistos por essas gentes de costumes e mentalidades tão diferentes dos nossos.  

     Henrique respirou fundo. O tema da conversa interessava-o imenso. Na escola não aprendera assim a História. Mas quem teria razão?! Faz um reparo:

- Quanto a Fernão Mendes Pinto já li alguns excertos do livro e na escola disseram-me que metade do que escreveu é mentira. No entanto, vou tentar ler a obra completa e depois já falaremos dela.
- Nem tudo que ele escreveu corresponderá à verdade; contudo, ele participou em muitas aventuras, percorreu muitas terras, conviveu com gente de outras latitudes e com culturas e religiões diferentes da sua. Mas com toda esta conversa ia-me esquecendo de te contar o que de facto aconteceu aquando do meu embarque para a Guiné-Bissau.
     Foi assim: antes do embarque, que ocorreu mais ou menos ao meio-dia, houve um grande desfile e depois disso ouviu-se um longo e fastidioso discurso, proferido por um oficial de alta patente. Duvido que os familiares dos soldados, ou os próprios, prestassem atenção àquilo (eu nem sequer sei de que falava); o que ouviam (e eu ouvi) era o bater forte de corações despedaçados; as lágrimas caindo estrepitosamente no chão; os gritos de mães, esposas, irmãos. O distinto militar não discursava para ninguém – representava o apagado papel de pobre declamador sem público!
     As senhoritas do Movimento Nacional Feminino por lá andavam, como abutres agoirando, pressagiando a desgraça, distribuindo sorrisos cínicos e de circunstância e alguns maços de tabaco aos meus parceiros de armas, cujo vício já carregavam, infelizmente, desde crianças!
     Uma banda militar tocou o hino nacional: «heróis do mar…», e o barco a afastar-se, a afastar-se… Nossos olhos, embaciados pelas lágrimas, procuravam sofregamente os rostos queridos dos familiares e amigos, das namoradas… Nunca mais voltaríamos a vê-los, pensávamos!

     Henrique estava profundamente emocionado. O que ouvia não era uma pequena história romanceada. Aquilo acontecera! Ao seu amigo e aos outros, a milhares de jovens portugueses. Após um prolongado silêncio, por fim reagiu:

- O que importa é que o Cândido voltou, e com saúde.
- Com saúde… nem por isso! Fiquei sem alguns dentes, com problemas de estômago, com… Enfim! Não vale a pena falar disso. Vou-te ler um soneto que escrevi recentemente sobre a partida, a que dei o título A Caminho da Guerra.
      
Naquele triste vinte de Janeiro,
Com correntes fortes, amordaçado,
Cabisbaixo, o peito destroçado,
Parte sofrendo o fraco guerrilheiro.

Manhã fria, manhã de nevoeiro,
Desenha a silhueta do soldado:
Estatura média, adelgaçado,
Um andar pacato, olhar ordeiro.

Sobe, a chorar, os degraus do paquete,
Do bolso das calças um branco lenço
Agita num gesto de despedida;

Com a mão esquerda brande o barrete.
Depois, já no navio, perde o senso…
E cai sobre a intermitente vida!

 

 

 






















quarta-feira, 23 de março de 2016

DICIONÁRIO ENCICLOPÉDICO DE MELGAÇO


MACRÓBIOS

    É difícil dizer quantos habitantes existem em Melgaço neste ano de 2016. Menos de dez mil pessoas a residir ali permanentemente tem de certeza. A maioria ultrapassa os sessenta e cinco anos de idade. Estes números impressionam, pois qualquer aprendiz de matemático chega à triste conclusão de que por este andar o concelho vai deixando paulatinamente de ter gente. No século vinte chegou a haver no nosso território melgacense mais de vinte mil criaturas! Algumas das freguesias já estão reduzidas a meia dúzia de moradores. As escolas do ensino primário, ou primeiro ciclo, encerram por falta de alunos, devido à ausência de nascimentos. A solução não está à vista. Como fixar casais jovens aqui se não houver empregos para eles? Contrariando todo este pessimismo existe o facto de as pessoas em Melgaço atingirem com alguma facilidade os cem anos de vida. Isso deve-se em parte a uma alimentação saudável, ares puros, águas não poluídas, a uma existência calma, longe do frenesi (ou frenesim) das cidades.    

 Eis alguns desses privilegiados:

Manuel Alves. Filho de José Alves, lavrador, e de Maria Pereira, doméstica. Nasceu na freguesia de Lamas de Mouro por volta de 1834. // Camponês. // Casou com Albina Domingues, de quem ficou viúvo. // Morou no lugar de Cima, Lamas de Mouro. // Faleceu nesse lugar a 11 de Julho de 1937, com cento e três anos de idade, e foi sepultado no cemitério da sua freguesia de nascimento (ver Notícias de Melgaço n.º 362). // Deixou bens. // Não fizera testamento. 

António Domingues. Filho de António Domingues e de Clara Domingues, moradores no lugar de Touça, Lamas de Mouro. Neto paterno de Manuel Domingues e de Maria Gregório; neto materno de António Domingues e de Maria José Afonso. Nasceu em Lamas de Mouro a 28/3/1873 e foi batizado na igreja católica local a 30 desse mês e ano. Padrinhos: António Domingues e Rosa Domingues. // Tinha 23 anos de idade, era solteiro, lavrador, morava no lugar de Cima, quando casou na igreja da sua freguesia, a 9/8/1896, com a sua parente no quarto grau de consanguinidade, Joaquina Rosa, de apenas dezassete anos de idade (o pai deu consentimento no acto do casamento), solteira, camponesa, filha de Manuel Joaquim Rodrigues e de Ana Joaquina Alves, do lugar de Cima, Lamas de Mouro. Testemunhas presentes: António José Alves, casado, lavrador, do lugar da Igreja, e António Joaquim Domingues, casado, lavrador, do lugar de Cima, ambos de Lamas de Mouro. // Faleceu na sua freguesia de nascimento a 14/2/1975 (confirmar), com cerca de 102 anos de idade!
     // Nota: deve ser o mesmo senhor que foi escolhido em Janeiro de 1918 para fazer parte da Comissão Administrativa da Junta de Freguesia de Lamas de Mouro. Também foram nomeados: Joaquim Pereira, José Domingues, Joaquim Domingues Ferreiro e Manuel António Domingues. 


segunda-feira, 21 de março de 2016

SONETOS

Joaquim A. Rocha



A ninfa sedutora, branca estrela,
Sugerindo mais do que mostrando,
Seus avantajados peitos arfando,
Lembra-nos, no mar, a sereia bela.

Ninguém dava tostão furado por ela,
Nesse tempo do seu olhar nefando;
Tudo naquele palco vil ousando,
Só por milagre não deixou sequela.

Agora altiva, brava nos seduz,
  Olhos de deusa, a todos cativa;
Por onde passa deixa mansa luz...

Odor estranho lança ao ar a diva;
Seus cabelos no vento, sem capuz,
Lembram velas soltas na maré viva.

sexta-feira, 18 de março de 2016

GENTES DE MELGAÇO 
(biografias)


AFONSO, Adelino. Filho de José Afonso e de Isabel Maria Esteves. Neto paterno de Pedro Afonso e de Maria Rodrigues; neto materno de Joaquim Esteves e de Antónia Maria Afonso. Nasceu em Castro Laboreiro a --/--/191-. // Residiu no lugar do Tezo. // Ainda jovem, emigrou clandestinamente para França. // Casou com uma francesa e tiveram dois filhos. Um deles, Yves Afonso, nasceu a 13/2/1944 e foi famoso actor de cinema e de televisão. O Yves um dia, por razões profissionais, veio a Portugal. Num dos intervalos, deslocou-se a Castro Laboreiro a fim de procurar os parentes, tendo de início havido alguma dificuldade no relacionamento, em parte por ele não saber falar português, e a tia não falar francês. Arranjaram um tradutor e tudo ficou bem. Esta notícia chegou aos ouvidos do realizador Manuel de Oliveira, que a contou no filme “Viagem ao Princípio do Mundo” (ver Melgaço Hoje n.º 18, de Setembro de 1996). // O outro filho de Adelino, fotógrafo de profissão, faleceu de forma trágica, em Itália, decorria o ano de 2004. // Adelino, segundo consta, só veio visitar a família uma única vez. Aguentou toda a II Guerra Mundial em França. Morreu nesse país, de acidente. // Adelino era irmão de Domingos (chegou a estar num campo de concentração nazi), e de José; também era irmão de Maria Rosa Afonso (que recebeu o sobrinho Yves, representada no filme por Isabel de Castro), mãe de Almerinda, de António, e de Manuel “Bento”.     

quarta-feira, 16 de março de 2016

QUADRAS AO DEUS DARÁ

Por Joaquim A. Rocha


Os santos fazem milagres,
As bruxas fazem feitiços;
0s vinhos dão-nos vinagres
E os castanheiros ouriços.


Quando a Terra acabar
Eu vou viver para Marte;
Levo comigo a guitarra
E o sagrado estandarte.

*

Dizem que eu sou do Minho,
Se sou do Minho errei;
Já não bebo verde vinho,
Nem falo como falei.


segunda-feira, 14 de março de 2016

ESCRITOS SOBRE MELGAÇO

Por Joaquim A. Rocha



MELGAÇO E O FUTURO


     Um texto sobre o futuro económico de Melgaço foi publicado em A Voz de Melgaço n.º 993, de 1/10/1993, por Francisco M. Cunha. Não pondo em causa os conhecimentos técnico-científicos do articulista, quero apenas lembrar-lhe que Melgaço se encontra em Portugal e não em França, país com grande desenvolvimento na agricultura e na pecuária. Por outro lado, o Estado português tem vindo a receber dinheiro da União Europeia a fim de indemnizar os agricultores que acedam a deixar de produzir certos bens do solo, produtos excedentários na Europa. Assim sendo, a Melgaço não resta outro caminho se não o do turismo e o da produção de bom alvarinho que, ao contrário do que sugere Francisco Cunha, somente é produzido na região demarcada de Monção e Melgaço, não tendo, portanto, rival em nenhuma outra parte do mundo. Tal como o Sancerre, o alvarinho tem mercado internacional – pena é que a quantidade produzida agora (muito pequena) onere de tal modo os custos de produção que no consumidor esse precioso vinho aparece a preços proibitivos.
     Francisco M. Cunha fala de «agricultura biológica»; esquece-se, porém, que o nosso país anda geralmente a reboque da ciência e técnica alheias! Não vai ser certamente um concelho no Alto Minho, secularmente esquecido pelos sucessivos governos, a introduzir métodos e técnicas revolucionárias! A não ser que se refira ao estrume produzido pelos animais – mas esse, que eu saiba, nunca deixou de ser usado! Os países com agricultura desenvolvida têm sido pressionados por grupos como o Green Peace no sentido de abandonarem adubos artificiais que são altamente poluentes e fazem mal ao organismo humano, além de destruírem várias espécies de animais e plantas.
     Francisco M. Cunha confunde turismo com emigração! Diz-nos no seu artigo: «A época forte do turismo, que gastava sem contar tanto, já faz parte do passado...» Deve estar a referir-se aos emigrantes que chegavam nos meses de Agosto e Dezembro, com os bolsos cheios de francos e marcos, e gastavam a bom gastar. Isso não era, não é turismo, na verdadeira acepção da palavra. É certo que os melgacenses espalhados por esse mundo fora, e até noutras vilas e cidades de Portugal, podiam escolher outro sítio para gozarem as suas férias; não o fazem, e isso é bom para o comércio local. Para que haja turismo é necessário haver promoção, divulgação, das belezas naturais da nossa terra, das suas caraterísticas próprias, da hospitalidade do seu povo, da sua cultura, dos seus monumentos, do seu clima, enfim, de tudo o que a distingue de outras terras, especialmente da sua culinária. É necessário também que existam infra-estruturas adequadas a esse fim: unidades hoteleiras, ótimos profissionais, tudo que proporcione ao turista bem-estar e sobretudo vontade de regressar no ano seguinte.
     Pessoalmente privilegio o turismo, não um turismo caro, para ricos, mas sim médio, para empregados e operários, para gente simples. É provável que o planeta terra tenha sítios tão bonitos como Melgaço: na Europa, Ásia, África, Oceania, América; mas tão pacíficos, tão naturais, tão singulares, talvez não haja!
     Francisco Cunha pensa que os investimentos em Melgaço, quaisquer que eles sejam, redundarão num colossal fracasso, num atirar dinheiro fora. Se os japoneses pensassem assim o Japão não seria hoje um dos países mais industrializados do mundo. Faça-se o que se fizer, nunca será a curto prazo, mas sim a médio ou longo prazo. Nós, «os líricos», não investimos pela simples razão de não sermos capitalistas; os capitalistas, esses, só investirão o seu dinheiro se acharem que vale a pena, isto é, se os estudos previamente efetuados lhes garantirem lucros compensadores.
     O citado senhor fala com ênfase do vinho tinto de Melgaço. Esquece-se certamente de que a produção sem comercialização é pura utopia (vejam-se os casos da maçã e da laranja). O vinho da nossa terra, exceção para o alvarinho, é vendido à candonga, tal como o bagaço. Sem empresas devidamente organizadas, sem técnicos competentes, sem escoamento dos produtos, Melgaço ficará para sempre na cauda do mundo. Nós, «os conselheiros», não desejamos isso; apenas queremos ver o nosso concelho progredir, ombrear com os demais concelhos de Portugal. A nossa «missão» é apelar aos eventuais interessados, aos órgãos do poder local e regional, para que tomem medidas acertadas, para que não deixem dormir eternamente um dos mais belos recantos do nosso país. O nosso saudável lirismo não nos esconde a realidade. Apesar de grande aparato, de grandes promessas eleitorais, de piscinas municipais e Casa da Cultura, disto e daquilo, sabemos que Melgaço continua a ser a princesa adormecida por séculos de indiferença e desleixo.
     Não sei se o atual presidente da Câmara Municipal é o príncipe que acordará a princesa; não sei se a espada encantada cortará cerce o silvedo que cerca o palácio real; não sei se o seu beijo tirará do sono secular a esbelta menina; sei, isso sim, que algo tem feito nesse sentido; mas, tal como Dom Quixote, a sua valorosa espada poderá estar travando batalhas contra moinhos de vento. Não sejamos, contudo, pessimistas e esperemos que Francisco M. Cunha possa um dia ver avenidas junto ao rio, bem iluminadas, com jovens pares namorando, e os mais idosos recordando toda a sua juventude; quiosques vendendo recordações e os pescadores da enguia e da truta «matando» o seu inócuo vício; turistas, de máquinas a tiracolo, tirando sucessivas fotografias das belíssimas paisagens melgacenses; restaurantes servindo bifes de presunto, sável frito, arroz de lampreia, e lampreia seca, truta na brasa; as Termas do Peso com ocupação a cem por cento (diabéticos, seus familiares e amigos). Nessa altura talvez o futuro económico de Melgaço seja diferente, para melhor, do que é hoje.


Artigo publicado em A Voz de Melgaço n.º 1003, de 15/3/1994.

sábado, 12 de março de 2016

POEMAS DO VENTO

Por Joaquim A. Rocha


desenho de Rui Nunes

O poeta é um sonhador
sonha tão constantemente
chega a sonhar o amor
um sonho de toda a gente

E quando pela tarde fora
sonha aquilo que não foi
aos seus lábios aflora
um sorriso que nos dói

Perguntar-lhe porque sonha
é vão e não faz sentido
perguntem ao vil ladrão
porque anda sempre fugido

O poeta é um sonhador
sonha tão ardentemente
que sonha ser tudo amor
neste ninho de serpente

E quando pela tarde fora
sonha como habitualmente
aos lábios puros aflora
 um sorriso estranho e quente

Dir-se-ia um peregrino
caminhando em sua mente
fugindo do mar de gente
em busca do seu destino

Porque sonha não se perde
anda assim infindamente
seu olhar é sempre verde
porque verde é sua lente



quinta-feira, 10 de março de 2016

MELGAÇO E AS INVASÕES FRANCESAS

Por Augusto César Esteves
              
       desenho de Manuel Igrejas

     As praças queria-as ele disciplinadas, mas para isso se conseguir deviam os oficiais ser hábeis e capazes. As dificuldades não o descoroçoavam porque nunca poupou esforços, nem fugiu a propor mudanças nos comandos das companhias. Elas eram quatro e em duas encontrei eu vincado o dedo do gigante. Serviu-lhe de pretexto a carga dos anos, os achaques da idade, e até as vagas, deixadas pelas promoções dos mais competentes. Para perpetuar o nome e o de nobres antepassados, por esta época andou este militar preocupado pela criação dum vínculo de morgado. Mas da França sopravam ventos contrários; a época era outra e no seu brilhante espírito cedo se estabeleceu e se acentuou a ideia da inutilidade. Desistiu. Teve ainda longos anos de vida, porquanto aturou até 1831, é certo; mas, na sua casa, nunca mais houve momentos de emoção e de intensiva alegria semelhantes aos sentidos e vividos nos dias de revolta, de que foi um dos principais cabouqueiros.
        Uma ou outra vez, quando o grande portão do seu solar se escancarava, abrindo ambas as folhas da porta para o amplo quinteiro e por ele via entrar, em cavalgaduras possantes, os seus velhos amigos e, entre eles, o compadre da Gaia, António Luís de Araújo Cunha Pereira Rosa, filho do reverendo D. João Luís da Cunha e Araújo, da Casa da Gaia e de Maria dos Passos Mosqueira, da vila, nas suas frequentes vindas ao Convento das Carvalhiças, porque dele foi síndico, ou à Câmara, quando foi vereador e para taxar e vigiar a venda dos géneros, porque foi almotacé e que tinha gerado já o seu afilhado, Tomás Joaquim da Cunha Araújo, mais tarde presbítero de S. Pedro, cuja herança, há poucos anos ainda, foi partilhada no nosso tribunal, num processo célebre pelo número de interessados atendidos; quando transpunham os mesmos portões grupos de pobres, pelo meio-dia, a tomar substancial alimento distribuído pelas senhoras da casa; quando o seu primogénito e a noiva, D. Maria Francisca Moreira da Cunha Rego, filha querida de uns fidalgos de Nossa Senhora de Monserrate, de Viana do Castelo, que ele ainda havia de ver morrer, ela, linda, gentil, botão de rosa a abrir para as canseiras da lide familiar e ele bonita figura de homem, cheio de vida, sorridente, se apearam da cadeirinha naquele dia 22/1/1828, entre os mil convidados para a boda, no regresso da velha igreja de Paderne, onde se haviam matrimoniado, ainda o coração do velho fidalgo do Rio do Porto se comoveu e nos seus olhos sorriu a satisfação. Mas as cambiantes da alegria eram sombras daquelas outras.
      As alegrias contudo forjam-se ao lado das tristezas e a veemência do desejo tempera-as o destino com decepções ou com o retardamento da sua realização. Umas coisas conseguem-se depressa, e por inteiro, e outras nunca se alcançam. De tudo isto houve na vida deste capitão-mor. // Uma vez, antes da revolta contra os franceses estalar, «pela especial devoção que sempre professou aos religiosos do Convento de Nossa Senhora da Conceição daquela mesma vila deseja que se lhe conceda uma sepultura na Capela-Mor da Igreja do referido Convento.» A graça foi-lhe concedida em mesa de 14/6/1806, mas só em 30/3/1813 lhe foi marcada a «referida sepultura, sita na capela-mor desta Igreja deste Convento ao pé do primeiro degrau que sobe para o altar-mor e supedâneo ([1]) com o retiro deste degrau seis palmos e meio, e direitamente no meio deste sítio, com a largura de cinco para seis palmos, e de comprido dez ditos
      Outra ocasião, já no fim da vida (ele tinha boa noção das conveniências sociais), como as fitinhas da sua Comenda da Ordem de Cristo se deterioraram, quis substituí-las e levou um trabalhão a procurar outras, pois em 29/1/1831 o seu amigo Ventura Peiteado Boceta escrevia-lhe de Braga uma carta de pêsames a que arranco apenas esta passagem por ser alusiva:

   «…Pois, Ilustríssimo Senhor: ainda que tarde dou cumprimento à recomendação de Vossa Senhoria a respeito das fitas de Hábito de Cristo. Não encontrei senão em Chaves o pequeno bocado que remeto a Vossa Senhoria; por enquanto não posso arranjar da outra qualidade que diz; eu penso lá ir cedo ainda que saudoso...»

       O nobre conjurado atravessou com aprumo, ninguém o duvide, o período das lutas fratricidas e como em Melgaço passou todo o ciclo da vida de Tomás das Quingostas, quem pode dizer toda a sua acção nesse longo período? Respeitado, bem visto e bem conceituado pelas autoridades superiores, levou ele uma grande parte da existência a receber correspondência de toda a espécie e até incumbências dignas de apreço, uma das quais hei-de ainda focar.
       O juiz de fora de Caminha pediu-lhe um dia informações confidenciais «sobre as qualidades religiosas, civis e sentimentos políticos de Luís António de Brito Cabral e de João Manuel Fernandes Costa, ambos da vila de Valadares, pelo bom conceito que faço de Vossa Senhoria.» Em 26/9/1830 oficiou-lhe o juiz de fora de Melgaço para o capitão-mor mandar reunir na vila na manhã do dia 28, pelas seis horas, as Ordenanças do distrito debaixo do comando dos seus oficiais a fim de, com o maior segredo, colocar um «cordão em toda a raia deste Distrito estendendo-se até Montalegre sendo permanente nos dias e noites de 28, 29 e 30 do corrente
       Não recordo outros actos da vida deste conjurado, mas dou ainda a conhecer a minuta dum ofício pelo capitão-mor enviada ao juiz de fora de Melgaço para mostrar a correcção de proceder perante o crime ou como se desmorona mais uma das atoardas sobre Tomás das Quingostas:

                        «Ilustríssimo Senhor

       Esta noite passada, das 10 para as 11, se apresentaram na freguesia de Prado uma malta de guerrilhas e, assaltando as casas de indivíduos que eu tinha feito armar por ordem do Ex.mo Senhor Marquês de Angeja, lhe levaram o cartuchame que lhe tinha sido entregue e porque o mesmo cartuchame era da Fazenda Real e o facto envolve em si decidida rebelião, por isso o participo a Vossa Senhoria para tomar aquelas medidas e conhecimentos de própria inerência ao que as leis determinam.

Deus guarde a Vossa Senhoria. Melgaço, 19/8/1827.

Ilustríssimo Senhor Doutor Juiz de Fora de Melgaço

// continua...



[1] Sobespadanio, no original. Trata-se de um estrado de madeira, próximo do altar, e onde o sacerdote põe os pés. // Pequeno pedestal, peanha.