terça-feira, 30 de agosto de 2016

OS NOVOS LUSÍADAS
(tentativa de continuação de «Os Lusíadas», de Camões)
 
Por Joaquim A. Rocha
 
desenho de Rui Nunes
 
42
 
Escorbuto, malária, mil doenças,
      Atingem nossos nautas ferozmente…
          Rezam-se missas, reforçam-se crenças,
     Mas cada dia falece mais gente...
          Os que restam já sonham gordas tenças.
        O rei, no seu trono, está contente... 
            E antes que a parca a todos mate
               Tocam-se os grandes sinos a rebate.


43
 

Perderam-se as naus, muitas caravelas,
Os marinheiros que as pilotavam;
Por sua alma queimam-se tantas velas!
Choram-se as pessoas que se amavam...
Crentes oram nas igrejas… capelas,
Viúvas de dor e raiva gritavam.
O astro-luz do ar desaparece…
O povo lança-se ao chão numa prece.

 
44
 

E assim o bei ganhou eterna fama
À custa dessas vidas por cumprir;
Morreram no alto mar, longe da cama,
Em sofrimento atroz… a rugir.
E quantos tombaram na suja lama,
Para o anjo da morte bem nutrir.
Os deuses assistiram à matança,
Mas ficaram na casa em segurança.

sábado, 27 de agosto de 2016


LINA, Filha de Pã
romance
 
Por Joaquim A. Rocha
 
 
 
// ...continuação.
 
 
A notícia correu célere. Tinha havido um acidente no rio Minho. Um dos homens dos contrabandistas perdera a vida, ao cair da pequena embarcação. Mal sabia nadar, a corrente era intensa, e não resistiu. Correu a seguir outra versão: a batela ia demasiado cheia, a carga fora mal distribuída, e por isso tombou; salvaram-se os mais fortes. Logo se soube que a vítima fora o infeliz Mário. Pobre rapaz: fora enganado pela Lina e pelo Juiz, a irmã pusera-o fora de casa, passara fome, e agora a morte por afogamento! Nascera sem dúvida sob o signo da desgraça.

 

- E agora a criança?! – perguntavam os moradores da Vila.

- Coitadinha, o pai biológico abandonou-a e agora morre o seu protector. Pobre criancinha, que irá ser dela?

 

     A família do defunto reuniu e decidiram levar a Lisete para casa da sua avó materna. Era gente paupérrima, simples camponeses, mas de qualquer maneira estaria lá melhor do que com a mãe, uma verdadeira galdéria, uma anarquista no mau sentido.

     Ainda nesse dia resolveram levar a catraia. A avó, relativamente nova em idade mas velha fisicamente, alquebrada, quando viu a neta abriu os braços e disse:

 

- Minha netinha! Ficas aqui connosco, não te há-de faltar uma malga de caldo para comeres.  

 

     Os da Vila tinham-lhe contado toda a tragédia: a odisseia e morte do parente, o desinteresse da Lina pela filha, enfim todo o drama daquela gente.

 

- A minha filha tem-me desiludido muito. Dizem-me que em todas as casas onde tem servido arranja sempre problemas: amiga-se com o patrão, diz mal da senhora, enfim, uma peste. Aqui já não vem há muito tempo; não tem saudades nossas!

 

- Nós ficávamos com a Lisete – diz a irmã do Mário – mas também somos pobres, não podemos criá-la; além disso, como sabe…

- Não é filha do seu defunto irmão, nós sabemos. E eu que lhe pedira para respeitar o Senhor Doutor Juiz, a galdéria foi-se meter com o patrão na cama, uma criança, apenas com dezasseis anos de idade. Que esperava, a estouvada? Que o Senhor Doutor casasse com ela? Que a levasse com ele para outra terra? Ela não sabia, a parva, que o Senhor Doutor Juiz é de famílias distintas, ricas, e que só quis brincar com ela, aproveitar-se da sua pouca idade e experiência? Pobre Lisete, nunca na vida dela verá o seu pai, e por nós nunca saberá quem ele é, pois o seu nome não será pronunciado nesta casa!

 

**

 

     Os anos foram caminhando paulatinamente. Acabada a guerra civil de Espanha, em 1939, uma autêntica carnificina, irmãos contra irmãos, filhos contra pais, crimes hediondos, tudo arrasado, por ordem de Franco, filho querido de Satanás, começara logo a seguir a II Grande Guerra, iniciada pelo abominável carniceiro, chamado Adolfo Hitler, que destruíra a Europa central. Milhões de pessoas morreram ingloriamente e outras tantas ficaram feridas e inválidas. O ser humano ficou de rastos psicologicamente. Como fora possível tamanha matança, tanta destruição, tanto desprezo e indiferença pela vida humana?! 

     Portugal desta vez não entrou na Guerra. O governo achou por bem não tomar partido abertamente. Toda a gente sabia que Salazar, disfarçadamente, apoiava Hitler e o seu modelo de sociedade; apoiava também Mussolini e o seu arquétipo fascista, mas por outro lado não queria esquecer o tratado que o nosso país fizera há séculos com a Inglaterra. Estavam em causa interesses nacionais, sobretudo os territórios ultramarinos, cuja riqueza começava finalmente a dar nas vistas.

     Os alemães tinham espiões em Lisboa, tal como ingleses e outros. O ditador português jogava o seu próprio jogo, ora negociando com uma parte, ora com a outra! No final, aqueles que ganhassem a guerra, estar-lhe-iam gratos. E assim aconteceu. Quando toda a gente esperava que os vencedores criassem uma democracia em Portugal, eis que a política interfere e tudo fica na mesma. Salazar tinha razão: o pouco que fizera pelos aliados chegara para salvar o seu lugar no poder. Podia continuar a desenvolver o seu modelo corporativista, a aniquilar os seus adversários, a coarctar a liberdade dos cidadãos.    // continua...

quinta-feira, 25 de agosto de 2016

DICIONÁRIO ENCICLOPÉDICO DE MELGAÇO


Por Joaquim A. Rocha






cartas de um castrejo
 
 
19.ª - «Senhor Redactor: o santo precursor, que os cristãos vão festejar em breves dias – os graves – assistindo aos exercícios litúrgicos, e as cachopas e os enamorados, cantando e dançando em volta das fogueiras, e roubando cravos dos minúsculos canteiros, para se enfeitarem, num momento de estupefacção e profundo desalento, clamou: «eu sou a voz que clama no deserto.» Mas as suas profecias realizaram-se aos olhos dos crentes; mas Ele viu e batizou o que anunciava. Nós, que temos uma fé viva na causa – também santa e justa – que advogamos, nós que prometemos e cumpriremos fielmente o sagrado dever de pugnar pelo engrandecimento progressivo da nossa querida terra, engrandecimento que só pode firmar-se na disseminação da instrução, pela criação de novas escolas e reforma radical da existente – única, e nas mais vergonhosas condições higiénicas e pedagógicas para população escolar superior a trezentas crianças! Não desesperamos. Isto faria perder a paciência ao beneditino mais paciente, como ao artista chinês que tentasse fazer de um ovo um palacete habitável ou que consentisse que lhe cortassem o rabicho sem protesto. Assistimos à inércia da Paróquia, à incúria da Câmara, não sabemos se ao desprezo do Ministro, que já, decerto, conhece das nossas necessidades inadiáveis – reclamadas e a reclamar, e não perdemos a paciência nem a fé e estamos certos de que, à força de persistência e de boa vontade – que não nos falham – conseguiremos a consecução das nossas aspirações, tão justas como desejadas. E, com esta convicção inabalável, ainda não exclamos como o São João dos namorados: «eu sou a voz que clama no deserto.» Castro Laboreiro, 16/6/1916.»

terça-feira, 23 de agosto de 2016

DICIONÁRIO ENCICLOPÉDICO DE MELGAÇO
 
Por Joaquim A. Rocha





CASA DE AO PÉ DA MATRIZ

 

     Sita na Vila de Melgaço. Trata-se de uma habitação normal, muito antiga, sem grandes dimensões mas, tal como todas as casas de fidalgos de linhagem, tem a sua história. Vejamos: certo dia Caetano de Abreu Soares de Novais (*), nascido na Vila de Melgaço a 31/12/1701, tenente de infantaria, resolveu requerer à corte real que autorizasse colocar na sua velha casa da Rua Direita um brasão de armas, visto os seus maiores pertencerem à velha nobreza. A resposta veio a 7/5/1751, no reinado de José I: «Dom José por graça de Deus rei de Portugal e dos Algarves… e me pedia por mercê que para a memória de seus antepassados se não perder, e ele usar, e gozar da honra das armas, que pelos merecimentos ganharam… lhe mandasse dar minha carta das ditas armas…» // Para que a sua prosápia ainda crescesse mais, a 12/12/1751 foi armado cavaleiro da Ordem de Cristo na igreja da Senhora da Conceição do Colégio de Tomar, perto da cidade de Coimbra, por frei Lucas de Seabra e Silva. // Caetano de Abreu Soares de Novais casara em 1739 com sua prima, Caetana Maria, filha do capitão Domingos Gomes de Abreu, o tal que mandara construir a capela da Pastoriza, e faleceu na dita casa, por si brasonada, a 27/11/1773. Um filho seu, Caetano José, em 1808, fez parte do famoso grupo que quis expulsar os franceses do país. // Os representantes legítimos dessa casa no século XX eram Augusto Jaime de Almeida (1877-1932) e suas irmãs, conhecidas pelas “Almeidinhas”; e no século XXI os netos do dito Jaime de Almeida e de sua esposa, Maria Cristina de Barros, que são: Isabel Maria Almeida e Luciano Jaime Almeida.

     /// (*) Novais é – em princípio - patronímico de Nóvoa (ou Nóboa), pois os antepassados do referido Caetano tinham o apelido Nóboa. // (Consultar a obra do Dr. Augusto César Esteves “O Meu Livro das Gerações Melgacenses”, volume I, p.p. 31 a 57).    

sábado, 20 de agosto de 2016


SANTUÁRIO DA SENHORA DA PENEDA

 
 
 

     Tudo começa com uma lenda. A 5/8/1220 uma rapariga pastoreava por aquelas penedias algumas cabras, quando lhe apareceu a mãe de Jesus, e lhe ordenou que dissesse aos da Gavieira para lhe edificarem naquele sítio uma ermida. A moça foi contar a seus pais, mas estes não acreditaram na sua história. Voltando a pastorinha com as suas reses àquele mesmo local, tornou a aparecer-lhe a senhora em cima de um rochedo e disse-lhe: «filha, já que não querem dar crédito ao que eu mando, vai ao lugar de Rouças, freguesia da Gavieira, aonde está uma mulher entrevada há dezoito anos, e diz aos moradores do lugar que a tragam à minha presença, para que nela cobre perfeita saúde, e assim te darão crédito ao que eu te ordeno.» A jovem assim o fez. Levaram a doente, Domingas Gregório, ao local onde estava a virgem santa e logo alcançou saúde e ficou livre de todos os achaques de que padecia. É óbvio que os habitantes da povoação de imediato construíram uma capela. Ao contrário dos pastorinhos de Fátima, aqui não se menciona o nome da pequena serrana. // O padre Carvalho da Costa (1650-1715), na sua “Corografia Portuguesa”, publicada nos princípios do século XVIII, ao falar da Gavieira, atual freguesia dos Arcos de Valdevez, registou outra versão da lenda: «Aqui, entre ásperas serras, ao pé de uma altíssima e precipitada penha, foi achada há muitos anos, em uma lapa, uma imagem da mãe de Jesus, ficando conhecida por Senhora da Peneda. É tradição que a descobrira um criminoso, natural de Ponte de Lima, que – acossado da justiça – passava miseravelmente a vida entre estes solitários bosques, servindo-lhe os lobos de companhia, nestes termos bem se pode presumir o quanto passaria desgostoso e maltratado, causa de recorrer a Deus com penitências, acompanhadas de grande arrependimento, do que é evidente prova o consentir a Senhora que ele fosse o primeiro a vê-la, depois de tantos anos estar oculta. É de cor morena e o corpo menos de palmo, com o menino Jesus no braço; é imagem milagrosa e de grande romagem todos os anos desde o 5 de Agosto até ao dia de São Lourenço (10 de Agosto)
     Esta romagem, ou festa, passou mais tarde a verificar-se entre 1 e 8 de Setembro, embora a partir de Julho já no local apareçam centenas ou mesmo milhares de pessoas. // Existem muitas explicações - umas fundamentadas, outras nem por isso - para o aparecimento destas imagens. Estas lendas iam-se espalhando por todo o Minho, e também na Galiza, com a ajuda dos párocos das freguesias, realçando os “milagres” entretanto surgidos. Correu a ideia de que quem não ia à Peneda em vivo iria depois de morto, tal como se diz para Santiago de Compostela. A Senhora das Neves, ou Senhora da Peneda, foi ganhando fama, e atraiu cada vez mais gente. Escreveu o padre Manuel António Bernardo “Pintor” (1911-1996), castrejo:
     «O princípio do santuário deve-se ao aparecimento de uma antiga imagem de pedra representando a Virgem Maria com o Menino Deus ao colo.» (ver o seu livro “Santuário da Senhora da Peneda – uma joia do Alto Minho”). Não se sabe ao certo quando foi construída a ermida, mas devido ao facto de acorrerem anualmente ao lugar da Peneda milhares de peregrinos, portugueses e galegos, acharam por bem fundar-se uma Confraria, ou Irmandade, que gerisse as esmolas recebidas e criasse as condições de alojamento das pessoas, erguendo quarteis, melhorasse acessos, além de tratar de todos os assuntos relacionados com o santuário. O arquivo dessa Irmandade apresenta-nos documentação a partir de 1738, o que significa que deve ter nascido no princípio do século XVIII. Já nessa altura os rendimentos anuais do santuário eram consideráveis. Muitos crentes deixavam em seus testamentos dinheiro para pagar dezenas ou centenas de missas e várias ofertas à senhora da Peneda. Alguns desses bens eram leiloados durante a festa anual.             

     É provável que D. Frei Bartolomeu dos Mártires, arcebispo de Braga entre 1559 e 1584, tenha dado um saltinho à Peneda quando visitou em Castro Laboreiro a ermida da Senhora da Anamão. As chamadas grandes pestes, séculos XVI e XVII, também ajudaram a divulgar o culto da Senhora da Peneda, pois a este santuário vinham clamores, pedindo à santa remédio, traduzido em curas, para essas graves doenças, costume que ainda se manteve até meados do século XX. // Na Peneda praticaram-se no passado algumas cerimónias macabras. Por exemplo: muitos romeiros eram levados em caixões como se fossem defuntos; o trajeto era desde o pórtico, lá no fundo das capelas, até à igreja, e alguns iam até ao cemitério que ali perto construíram. «Havia quem assistisse dentro do caixão, em geral aberto, à missa de promessa, e até havia quem mandasse cantar ofícios de defuntos», conta-nos o citado padre Bernardo Pintor. Esta prática chegou ao século XX. A emigração, o contacto com outros povos mais evoluídos, tornou essa prática obsoleta.

     Paulatinamente o santuário foi crescendo. A capela deu lugar a uma igreja «capaz de recolher em si mais de trezentas pessoas, com sua capela-mor.» Tinha de comprimento vinte e dois metros e de largura oito metros. Essa igreja foi derrubada e substituída por uma maior no século XIX. Ergueu-se um muro em silharia a suportar o terreiro, obra de grande vulto para a época, tendo em conta a dificuldade que havia em transportar os materiais. Os caminhos eram irregulares, chamados caminhos de cabras, só com carros puxados a bois se conseguia colocar na Peneda a telha, as madeiras, a cal, as imagens, etc. Por outro lado, os trabalhadores tinham dificuldade em arranjar alojamento, pois esse sítio era despovoado, ermo. Tiveram de construir casas rudimentares, sem quaisquer confortos, com invernos agressivos e imprevisíveis. Não havia lojas, não havia hortas, nem campos de milho ou centeio, nada! Tudo teve de ser feito a partir do zero absoluto! «A necessidade obriga», é um ditado muito antigo. A vida nos séculos XVII, XVIII, XIX, e até na primeira metade do século XX, era, para a maioria da população portuguesa, muito dura, quase miserável, até nas vilas e cidades, quanto mais na serra, onde a neve se mantinha durante quatro meses ou mais. Daí as pessoas sujeitarem-se a tudo por umas escassas moedas e um côdea de pão. // As vias de acesso foram ganhando forma, mas lentamente, pois ainda no século XX tiveram de ser alargados caminhos a fim de chegarem à Peneda os automóveis e camionetas. Anteriormente faziam-se dezenas ou mesmo centenas de quilómetros a pé para chegar a esse lugar; os peregrinos pernoitavam debaixo de lapas, rochedos com cavidades, pequenas grutas, sofrendo as agruras do tempo, sujeitando-se a imensos sacrifícios, com o objetivo de ganharem o céu, as graças da virgem Maria. A crença era forte, a ignorância predominava entre o povo, quase todo rural, iletrado, incapaz de se aperceber que há limites, até para o sofrimento. A igreja católica regozijava com o crescimento do santuário; em finais do século XVIII já era considerado o maior e o mais frequentado do Minho! O dinheiro oferecido era muito para a época, as ofertas em ouro, em prata, os legados, surgiam quase naturalmente. A Mesa já emprestava dinheiro a juros! Segundo consta, nem o santuário do Bom Jesus em Braga rendia tanto! Faziam-se peditórios para a obra, a santa virgem tudo merecia, a recompensa viria depois da morte.

     O Vaticano tomou conhecimento do fenómeno, e em 1742 atribuiu à Peneda um breve com privilégios litúrgicos para os sábados e oitavários da Senhora. Por essa altura foram construídas as primeiras capelas, chamadas da via-sacra, que chegaram a vinte, gastando-se nessa obra quantias astronómicas para a época. // No século XIX, por volta de 1820, D. João VI, então no Brasil, a pedido da Confraria, em litígio com o pároco do Soajo (- sobretudo por causa das esmolas; argumentava-se que se os párocos as recebessem depressa o santuário seria votado ao abandono -) assumiu-se protetor do Santuário, eximindo-o da jurisdição administrativa eclesiástica. Por essa altura já a Irmandade tinha estatutos novos, aprovados por provisão régia passada em Lisboa a 5/4/1819 em nome do rei.
 
 
     Ainda nesse século XIX se construiu na Peneda um hotel para peregrinos mais endinheirados, o qual foi em parte destruído a 28/4/1886 devido a uma gigantesca trovoada, a qual fez deslocar três penedos que destruíram toda a parte do lado poente; sofreu nova derrocada em 1946, devido a ter rebentado um açude construído ali perto. // O poder da Irmandade era tal que cobrava dinheiro aos tendeiros quando ali chegavam para venderem os seus produtos!  Nessa dita irmandade, graças ao prestígio alcançado, estiveram a partir de certa altura pessoas de elevada categoria, embora não residissem lá. Por exemplo: o deão de Braga, D. Miguel José de Sousa Montenegro, e seu tio D. Francisco Pereira da Silva, além do fidalgo da Casa Real, Simão António da Rocha e Brito, cavaleiro da Ordem de Cristo. Um parente deste, da Casa de Aguiã, o padre João Bento da Rocha Brito, também foi juiz da Irmandade. Em 1743 foi eleito para juiz José de Melo Sampaio Pereira. Até o visconde de Bertiandos, Gonçalo Pereira da Silva, foi juiz desta Irmandade, reeleito a 3/9/1851 e a 2/9/1853. // Em finais do século XVIII, ou inícios do século XIX, construíram a Casa do Consistório. // Mandaram fazer uma chapa para imprimir estampas da Senhora da Peneda a fim de serem vendidas aos devotos, negócio que ainda continua em nossos dias. Para que os visitantes pudessem saber as horas, os elementos da Mesa mandaram construir um relógio de sol.

     Depois da guerra civil, com a vitória de D. Pedro IV, em 1834, iniciou-se em Portugal uma reforma administrativa, deixando a freguesia da Gavieira de ser anexa à do Soajo, tornando-se autónoma. Com esta transformação o Real Santuário de Nossa Senhora da Peneda, como se designava, teve de se adaptar à nova realidade. É a partir de 10/9/1835, por deliberação da Mesa Administrativa, que vai nascer a nova igreja, iniciada em 1837, monumental, à qual o povo chamará mosteiro. Em 1856, numa memória descritiva, lê-se: «Acha-se, pois, este novo templo concluído de paredes em todo o corpo da igreja, capela-mor, sacristias…» Seria inaugurado na romaria de Setembro de 1857. A velha foi adaptada a quartel para recolher os voventes. Abaixo da igreja construíram a partir de 1854 um escadório, com quatro estátuas (Fé, Esperança, Caridade e Glória), terminado em 1861, constituindo tudo - igreja, escadório, capelas - um conjunto harmonioso, de rara beleza. O responsável pela obra chamava-se António Manuel Gois de Melo, mestre pedreiro, natural de Lanhelas, Caminha. // O administrador do concelho dos Arcos de Valdevez, a 25/5/1842, apoiado na lei de 29/10/1840, art.º 40, manifesta interesse, através de um despacho, em controlar as contas do santuário.
     A pequena ermida, nascida graças ao achado de uma minúscula imagem, transforma-se numa obra majestosa, numa enorme fonte de receita, num monumento nacional. A Peneda, fraga sobre fraga, matos e floresta, metamorfoseia-se num lugar da freguesia da Gavieira, habitado por centenas de pessoas, com cemitério próprio, com fonte de água potável, com negócios rendíveis. Caso estivesse mais perto de grandes cidades, ter-se-ia tornado provavelmente numa povoação próspera, tal como aconteceu em Fátima.               

NOTA: poderá ler este artigo, da minha autoria, com mais imagens a cores, no livro «Lugares Sagrados de Portugal I,» edição do Círculo de Leitores, Abril de 2016, páginas 199 a 203 (inclusive).                  

quinta-feira, 18 de agosto de 2016

DICIONÁRIO ENCICLOPÉDICO DE MELGAÇO
 
Por Joaquim A. Rocha



MACRÓBIOS


 Em Paços, apesar de ser uma freguesia bonita, com ares puros, perto do rio Minho, não encontrei ninguém até hoje que falecesse com cem ou mais anos de idade.

PAÇOS
 
ROSALIA CÍLIA. // Nasceu na freguesia de Paços, concelho de Melgaço, por volta de 1810. // Faleceu a 1/1/1907, em sua casa de morada, sita no lugar de Cruz de Merelhe, freguesia de Paços, com todos os sacramentos da igreja católica, com 97 anos de idade, no estado de viúva, sem testamento, sem filhos, e foi sepultada no adro da igreja. 





Rufina Rosa Veloso (ao centro)


VELOSO, Rufina Rosa. Filha de José Joaquim Veloso e de Ana Rosa Esteves, lavradores, residentes no lugar das Vinhas. Neta paterna de Francisco José Veloso e de Genevova de Jesus Fontes; neta materna de João Esteves e de Clara Rosa Esteves. Nasceu na freguesia de Paços, concelho de Melgaço, a 3/5/1909, e foi batizada na igreja paroquial a 10 desse mês e ano. Madrinha: Clara Rosa Esteves, solteira, camponesa, do lugar da Corga, Paços. // Casou na Conservatória do Registo Civil de Melgaço a 7/2/1928 com Domingos de Almeida, soldado da Guarda-Fiscal, de 28 anos de idade, natural da freguesia de Rebolosa, concelho do Sabugal, filho de José de Almeida e de Luísa Ramos. // O seu marido morreu em Braga a 19/8/1978. // Ela faleceu na Vila de Melgaço a 21/5/2006, com 97 anos de idade. // Com geração.  

terça-feira, 16 de agosto de 2016

ENTRE MORTOS E FERIDOS
romance histórico
 
Por Joaquim A. Rocha


desenho de Rui Nunes

// continuação (ver 10/7/2016)


     Mamadu, talvez analfabeto, apercebia-se do conflito. Não sabia História, nem sequer Geografia; sabia, isso sim, que Alá significava o Deus e Maomé o seu profeta; que o Corão era o grande livro sagrado dos muçulmanos e que nele se ensinava: «dente por dente, olho por olho», ao contrário do cristianismo, que sugere que se dê a outra face a quem nos bate, mas na prática tanto uns como outros, se puderem, arrancam dentes e olhos aos seus inimigos.

- O rapaz acaba por ser uma figura exótica, uma espécie de extra-terrestre, do seu ponto de vista…

- Talvez. Foi em Bolama que o vi pela primeira vez, naquela ilha bela e estranha, a ilha das noites serenas e dos amores adiados. Ao princípio imaginei que se tratava de um prisioneiro, mas não: era a mascote! Nunca soube como o encontraram ou como ele encontrou a Companhia. E logo naquela operação que faltei – a minha febre subira aos quarenta graus! E por causa daquelas feridas, a que dão o nome de impigem, na virilha, entre pernas, provocadas sem dúvida pelas lamas asquerosas das intermináveis bolanhas. Pensei morrer.

     Caramba! Como eu gostaria de ter assistido a tudo; não teria o mesmo encanto, o infinito mistério, mas saberia. E os meus camaradas apenas me informavam: «surgiu!»

     Durante muito tempo permaneceu na Companhia. Só a abandonou, desaparecendo misteriosamente, como surgira, como o vento depois da procela, quando a destacaram, no ano de mil novecentos e sessenta e sete, para Contuboel, uma zona mais pacífica.        

     Parecia alheio ao mundo que o rodeava: as cubatas incendiadas; os corpos desfeitos; as fugas rocambolescas; o medo e a morte, os feridos, tudo o deixavam indiferente. Mamadu era feito de aço e acção! E aquele sorriso de anjo guerreiro, apocalíptico, permanecia, teimoso, no seu fidíaco rosto. Sem desfalecer, sem jamais dar parte de fraco, continuava a sua justa luta.

- Andava fardado?

- Mais ou menos. Vestiu camuflado do exército luso e teve direito a G-3, a metralhadora que então se utilizava. Deixou de ter idade, de ter família, de ter chão. Estava onde estivesse a Companhia, pensava militarmente, pensava guerra, respirava e vivia tempestade!

     Teve medalhas, qual atleta vitorioso nuns quaisquer jogos olímpicos, louvores mil; tornou-se herói nacional! Um exemplo a seguir. Os antigos escultores gregos teriam de ser ressuscitados para produzirem a sua estátua: a colossal e eterna estátua do pequeno grande Mamadu!

- Está a exagerar – farfalhou Henrique.

- Talvez… Medalhado, e já com a arca cheia de troféus, não parou – isto eram coisas de somenos. O seu objectivo pairava alto, residia na sua mente obcecada. A sua tribo… tinha-se esquecido dela! Mamadu lutava em nome dos fulas, mas estes já não o reconheciam.

     Se tivesse olhado com atenção à sua volta verificaria que todas as etnias da Guiné tinham esquecido as suas antigas rixas e, unidos, combatiam o colonizador. Não olhava! Estava fora do tempo e do espaço. Os chefes tribais compreenderam finalmente que o ódio cansa e que o seu inimigo nunca poderia ser o seu irmão de cor, de raça, de estirpe.

- O gaiato ficou, desse modo, isolado!

- Completamente sozinho. A sua guerra terminara no dia em que todas as etnias se abraçaram e decididas lutavam contra o regime opressor. Encontrava-se entre a espada e a parede. Passou a ser um alvo a abater!

- E o que é que ele fez?

- Quando toma consciência da situação desaparece: «Desapareceu o Mamadu» - comentavam com emotividade os meus camaradas. «Ninguém sabe para onde foi!»

     «Ele não era deste mundo» – disse-lhes eu por graça.

    «Mamadu reencarnava Farang, herói dos Sorcos», brincava o alferes Briosa, amante dos mitos e das lendas.

     «Farang?» - perguntaram todos a uma só voz.         

     «Querem saber quem foi essa importante personagem?»

     «Sim, meu alferes; conte» - pediram alguns soldados.

     [«Então ouçam atentamente:

     Os Sorcos eram pescadores. A sua tribo estava instalada junto do Níger desde há séculos. A tradição diz que eles foram os primeiros homens saídos dos “buracos da terra”, isto é, os primitivos habitantes do planeta, fundadores do “clã dos peixes”.

     Farang, o nosso herói, pertencia a essa tribo. A lenda começa assim:

     «Em Gao vivia Farang. E não havia em toda a terra outro homem que se lhe assemelhasse. Criança, lembrou à mãe: «nunca se viu um filho de Sorco não ter barco! Vou à floresta e cortarei uma árvore para construir uma piroga.»

     A mãe concordou: «está bem, meu filho.»

     De manhã cedo preparou nove medidas de milho e meteu-o num saco de pele de bode. Pegou na machada e meteu-se a caminho da floresta. Começou a cortar troncos. Chegou a noite. Adormeceu. Ao romper do sol recomeçou o trabalho. E assim durante catorze dias. Descascou os troncos, preparou a madeira, iniciou a construção do barco. Pôs as peças em monte e retornou à aldeia.

     «Minha mãe, dê-me uma serra.» A mãe assim fez.   

     Voltou para a floresta. Nos catorze dias seguintes serrou folhas de palmeiras anãs. Entrançou-as para fazer cordas e formou um grande rolo. Sentou-se em cima dele e pensou na maneira de transportar para a beira do rio as peças. Teve uma ideia: iria buscar gente à aldeia para o ajudarem. Procurou os velhos de Gao. Disseram-lhe: «Que Deus te dê tantos bens como deu ao teu progenitor.» E chamaram os rapazes. Foram para a floresta, mas todos juntos não conseguiam levantar a popa.

      «Farang, não será este ano que terminarás a tua piroga. Nunca mais acabarás de a coser.»

      «Esperem.» Enrolou a corda em volta de um braço, pôs à cabeça todas as outras peças, e caminhou pela floresta.

     Quando os jovens se cansaram de transportar a popa, pegou nela, levou-a, e nem por isso os seus passos abrandaram. Chegado à planície colocou toda a madeira em monte e preparou um lugar para a feitura da piroga. Levou catorze dias a unir as peças com as cordas, só faltava fazer uma única costura. Apercebeu-se de que não possuía mais cordas e a mãe aconselhou-o a ir procurar o arpoador Tinamor Farang, seu tio. Ele não lhe deu cordas! Fitou-o e chamou:

      «Albarcá-Babata!»

      «Aqui estou, mestre.»

      «Fomboragali!»

      «Pronto, mestre.»

      «Kusutelge!»

      «Kusu-Djumandi!»

   E continuou a chamar, chegando a trezentos e trinta e três. Disse ao sobrinho: «Aqui estão os pirogueiros: os da popa e os da proa. A gente de Gao será testemunha dos teus actos. Respeita o teu povo.» Virando-se para os homens, disse-lhes: «respeitai-vos mutuamente, a fim de serdes poderosos.» Ensinou-lhes todos os sortilégios que conhecia.

     «Farang, leva sempre contigo o bode preto, a galinha preta, o vaso de terra e leite fresco. Não te esqueças de prestar culto aos deuses protectores dos Sorcos: Karamankoy, Marmamkoy, Kayankoy e Mangasi. É tudo quanto posso dar-te.»

     No dia seguinte foram à floresta cortar palmeiras anãs e terminaram a piroga. Na sua primeira pesca, matou trezentos hipopótamos, trezentos caimões, trezentos manatins, trezentas tartarugas aquáticas, trezentos lagartos aquáticos, além de outras presas. Albarcá-Babata disse aos companheiros: «obedecei a Deus e a Farang.»

     Cansados de tanto ter arpoado, transportaram a embarcação para debaixo de uma árvore. Passaram aí a noite. Farang deitou-se e adormeceu. Djinni, o génio da árvore, perguntou aos homens: «de onde vêm?»

     «Vimos de Gao e vamos para Tigilem.»

     «Não sabem que ninguém pode vir dormir debaixo desta árvore?»

     Farang acordou. «Que aconteceu?!»

     O génio respondeu-lhe: «a tua viagem será a tua desgraça.»

      «Djinni, hoje mesmo cortarei a tua árvore!»

      «E tu morrerás hoje mesmo e todos os teus pirogueiros desaparecerão da face da terra.»

      Lutaram. Farang invocou as suas divindades, agarrou Djinni, lançou-o ao ar e depois atirou-o violentamente ao chão. Quis apoderar-se do seu coração mas o génio suplicou-lhe: «não me mates; dar-te-ei todos os meus feitiços.»

     Susteve o braço. «Deste-me tudo?!»

     Encostou-lhe a faca ao pescoço. «Não me mates; ainda tenho mais feitiços.» Deu-lhe mais trezentos e trinta e três sortilégios. «Toma o vaso com todos eles.»

     Ora aquele génio era o filho do chefe de todos os génios Djinnis. Choraram amargamente os sortilégios perdidos.

     Farang tornou-se poderoso. Lutou com gigantes, monstros de muitas cabeças, deuses de outras galáxias. Casou com Fatimata, uma bela mulher que não o amava. Para se libertar dele, um dia solicitou-lhe: «Farang, se me amas verdadeiramente, traz-me a gordura tirada do ventre do hipopótamo de Denderá-gusu.»

     Exclamou: «tu queres destruir a minha casa: ninguém pode combater com ele; pede outra coisa, mas isso não.»

     «Podes dar-me todo o ouro da terra, tudo o que estiver ao teu alcance, mas eu dir-te-ei: traz-me a gordura tirada do ventre do hipopótamo.»

     «Maldita sejas; queres destruir a minha casa! Matar-te-ei quando regressar.»

     «Não me importo, se me fizeres esta vontade.»

     Contou a seus homens e a sua mãe e todos o aconselharam: «manda-a embora, ela quer a tua perdição.»

     «Não! Lutarei até à morte; o meu amor por ela é muito superior ao ódio – lutarei.»

     Agarrou o hipopótamo e quis atirá-lo ao chão, mas o sítio onde ele bateu com a pata transformou-se num pântano! O hipopótamo agarrou Farang e esforçou-se por abatê-lo, mas o sítio onde ele tocou transformou-se numa grande duna! A poeira que eles levantaram estendeu-se sobre toda a terra e escureceu o céu!

     O marabuto de Farang apareceu. Chamava-se Alfa Mahalmudu. Bateu nos dois com o seu bordão: caíram como fulminados.

     «Deixa-me; tenho de matar o hipopótamo ou ser por ele morto!»

     A luta recomeçou e o marabuto regressou a Gao. Farang pediu protecção aos seus ídolos. Vieram sem demora. Agarraram o hipopótamo e lançaram-no por terra. Farang degolou-o e extraiu-lhe a gordura. Chegou a casa.

     «Bom dia, meu esposo; estou muito contente por te ver vivo!»

     «Aqui tens a gordura, vai untar os cabelos.»

     Pegou nela, mandou que a penteassem, entrançou os cabelos com fios de oiro e prata, pôs argolas nos tornozelos, um labadjur e um bakawel em volta dos rins, enfiou braceletes nos braços e adornou-se com todas as suas jóias. Farang ficou sete dias a contemplá-la. Não comeram, nem beberam, durante esse tempo. Por fim, ordena:        

     «Fatimata, deita-te; vou degolar-te.»

     «Não me degoles; bem vês que estou penteada e bela.»

     «Deita-te!» - insistiu ele, com veemência.

     Ela deitou-se; ele pegou na faca e brandiu-a, mas não foi capaz de a degolar. Então o seu filho, num ímpeto de fúria, cortou o pescoço à madrasta.

     Farang ficou triste. A partir daí lutou incansavelmente contra todos os génios e deuses contrários. Mandou construir uma guitarra e começou a tocar. Ouvindo a música, todos os peixes do rio vêm para a sua beira. É assim que agora pesca e dá alimento ao seu clã.»]
 

*


     «Que linda história, meu alferes; estava um dia inteiro a ouvi-lo» - apressa-se a comentar o “Almada”.
 

*


     Henrique tudo escutava com redobrada atenção. Curioso, pergunta:
 

- E nunca mais viram a vossa mascote?!

- No término de 1967, quando entramos no Uíge para regressar a Portugal, um soldado gritou: «Olhem o Mamadu, é ele, olhem o Mamadu! Está a dizer-nos adeus.» Não sei se alguém o viu além desse camarada, pode ter sido uma alucinação. Eu, só tendo olhos para o mar, não o vi, confesso, mas senti um arrepio pelo corpo todo, o seu forte abraço de despedida, a sua presença ausente! // continua...