sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

DICIONÁRIO ENCICLOPÉDICO DE MELGAÇO
 
Por Joaquim A. Rocha
 
 
 
CASA DA CALÇADA
  
     Está situada em São Julião de Baixo, SMP. Escreveu o Dr. Augusto César Esteves: «A herdade de São Gião, na Calçada, havia sido comprada por Sebastião Pinheiro a Álvaro Afonso de Amorim e era aquele padre quem a estava usufruindo por alturas de 1634.» (“O Meu Livro das Gerações Melgacenses”, volume II, página 65). Pertenceu a Jerónimo Gomes de Abreu Magalhães, sargento-mor das ordenanças, tendo-lhe sucedido na administração seu filho, Jerónimo José Gomes de Abreu Magalhães, o qual foi casado, mas não deixou descendência. Por isso, o acervo da Casa passou a seu irmão, Dr. João Caetano Gomes de Abreu Magalhães. / É uma bonita Casa solarenga. Existem nela dois brasões: um do lado direito e outro do lado esquerdo. / Pelo decreto 1/1986, de 3 de Janeiro, foi classificada como imóvel de interesse público. / Até 2015 foi seu proprietário o Arquiteto Luís Magalhães Fernandes Pinto, casado e com filhos, descendente do Dr. João Caetano. / Depois da morte deste senhor, ficaram como proprietários a sua viúva e filhos. // Parte deste solar tem servido nos últimos anos como alojamento turísco rural. // Avista-se dali o rio Minho e alguns lugares da Galiza. // A este solar pertence, ou pertenceu, a capela de São Julião.   










quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

DICIONÁRIO ENCICLOPÉDICO DE MELGAÇO
 
Por Joaquim A. Rocha
 
 
 
 
 
ARADO

 
     Este instrumento agrícola terá surgido na idade do bronze, na Mesopotâmia. Até 1892 existiam três tipos conhecidos de arados: o de garganta, o quadrangular e radial. A partir desse ano temos mais um, inventado por Francisco José Rodrigues Junior, de Cristóval (ver o jornal «Valenciano» n.º 1268, de 24/7/1892). // O padre A. Domingues escreveu um artigo em A Voz de Melgaço n.º 936, de 1/4/1991, dando-lhe o título “Engenhos rudimentares que existiram em Parada do Monte – o arado”. Diz-nos ele: «é de todos bem conhecido o utensílio da lavoura a que se chama o arado. Do que nem todos terão conhecimento é das várias modalidades existentes nesta localidade, desde há cem anos, sem falarmos em tempos mais recuados. O mais antigo, de que há memória, consistia em três peças de madeira, trabalhadas simplesmente com a machada, sem molduras de espécie alguma, às quais se adicionava um bico de ferro para perfurar a terra. A primeira chamava-se (…) rabiça. Precisava de ter uma parte direita para levantar a terra com o referido bico de ferro na frente, e outra com uma curva, na parte cimeira, para nela manobrar a mão do homem. No meio, de acordo com a profundidade requerida, havia um encaixe para se ligar ao temão. Esta peça, a mais comprida, arrastava a rabiça, pelo encaixe mencionado, e a outra extremidade, acompanhando os animais ao jugo, passando pelo meio dos dois, sendo enlaçado por uma verga de vime, para não deteriorar o temoeiro, peça esta de couro cru (…). Havia ainda a chavelha, outra peça de pau, junto à canga, na parte da frente. / Para segurança, e para ficarem sempre à mesma distância, o temão e a rabiça, havia ainda a relha que, bem segura no fundo da rabiça, atravessava o temão, por um furo, e aí era apertado por uma cunha de pau, ficando o arado mais aberto ou menos conforme a profundidade requerida no solo terrestre. / Qualquer pessoa, com um pouco de boa vontade e alguma experiência, podia, em poucas horas, fazer este utensílio da lavoura. Com ele lavravam as terras, quer elas fossem de cultivo permanente, quer fossem os chamados lavores cavados nos montes e depois queimados para a sementeira do centeio. / Volvidos tempos, apareceu um outro arado, todo de pau com duas rabiças, que na parte de baixo ficavam unidas à coluna ou teiró e ainda ao temão. / Também existia a relha, ou sega, tendo ainda mais a aiveca, que vulgarmente chamavam a “pasta”, sendo esta presa ao temão, de forma que só lavrava para um lado. / O temão apoiava-se na parte dianteira num pequeno rodado, todo de madeira. Na argola dianteira segurava-se a cambrozela e esta à canga do gado. / Era um objecto já mais perfeito, e com maiores vantagens, do que o primitivo já descrito. Também ele era todo de madeira, com excepção do bico com que terminava a aiveca ou pasta. / E parece ser certo que já não existe nenhum arado deste género cá no nosso burgo. (…) / Depois apareceu o arado de ferro (…), puxado pelo gado, e bem assim outro maior, e mais perfeito, atrelado ao tractor, que é o que actualmente se usa para a maior parte das sementeiras…»             

sábado, 24 de dezembro de 2016

SONETOS
 
Por Joaquim A. Rocha






O MEU LAR

(140)

 

Residi numa selva de betão,

Ali para os lados de Odivelas…

Tudo se assemelhava a favelas,

Do Rio de Janeiro ou Paquistão.

 

Pereceu ali minha ilusão,

A minha crença em coisas belas;

As serenatas à luz das mil velas,

O meu amor, minha religião! 

 

Fiquei vazio, isolado, sozinho,

Zangado com o mundo, com as gentes,

Bebi jeropiga, litros de vinho,

 

Afoguei a dor em aguardentes.

Regressei cansado ao velho Minho,

Onde jazo ao lado de descrentes.

quinta-feira, 22 de dezembro de 2016

DICIONÁRIO ENCICLOPÉDICO DE MELGAÇO
 
Por Joaquim A. Rocha



Macróbios





VIEITES, Filomena. Filha de Tomaz Joaquim Vieites, lavrador, natural de São Paio, Melgaço, e de Guilhermina Rosa Rodrigues, doméstica, natural de Paderne, Melgaço, onde moravam, no lugar de Sainde. Neta paterna de Jerónimo José Vieites e de Matildes Alves; neta materna de Manuel Francisco Rodrigues e de Teresa Maria Esteves. Nasceu na freguesia de Paderne a 5/12/1893 e foi batizada na igreja a oito desse mês e ano. Madrinha: Josefa Esteves, solteira, doméstica. // Faleceu solteira, na sua residência, sita no lugar de Fonte, freguesia de Alvaredo, concelho de Melgaço, a 18/12/1992 (*), com 99 anos de idade, e foi sepultada no cemitério daquela freguesia. // Deixou uma filha. /// (*) Na campa registaram a data de 18/12/1993.

 

ALVES, Isabel. Filha de Domingos Alves e de Maria Rodrigues, lavradores. Nasceu na freguesia de Parada do Monte, concelho de Melgaço, por volta de 1807. // Camponesa. // Faleceu no lugar de Coto Santo a 3/1/1910, com cento e três (103) anos de idade, com todos os sacramentos da igreja católica, no estado de viúva de Manuel Joaquim Alves, sem testamento, com filhos, e foi sepultada no adro da igreja. 

terça-feira, 20 de dezembro de 2016

DICIONÁRIO ENCICLOPÉDICO DE MELGAÇO



Por Joaquim A. Rocha



rio Trancoso no mês de Julho e Agosto

 
LUGARES
 
CEVIDE

 

 Cevide (ou Cebido) é lugar da freguesia de Cristóval, concelho de Melgaço, entalado entre o rio Minho e o rio Trancoso. // A origem do seu topónimo é difícil de determinar, mas penso que Cebido teria sido outrora apelido. // Nesse local foi colocado o marco número 1, significando isso que ali começa Portugal. Mário Olímpio Máximo Monteiro, cevidense, embora nascido em 1972 no hospital da Santa Casa da Misericórdia de Melgaço, depois de muita pesquisa descobriu esse dito marco, escondido há muitos anos por densas silvas, e também localizou em Cevide o antigo porto de Bergote, que os historiadores melgacenses Dr. Augusto César Esteves e padre Bernardo Pintor diziam ter existido entre as freguesias de Chaviães e Paços.  // Em Cevide, e noutros lugares de Cristóval, ouvem-se cantar os galos em dois países: Portugal e Espanha; e três províncias - Pontevedra, ao norte, Ourense, ao nascente, e Minho, ao sul (ver Jornal de Melgaço n.º 696, de 15/8/1907 – transcrito de “A Nossa Pátria”, artigo inserido na Revista Ilustrada). // Lê-se no Notícias de Melgaço n.º 216, de 17/12/1933: «O nosso estimado conterrâneo e importante capitalista, senhor Adriano dos Santos Sobrinho, residente, há bastantes anos, em Lisboa, registou provisoriamente uma nascente de águas minerais que descobriu nas suas propriedades dos Caneiros, Cevide, na freguesia de Cristóval, deste concelho. Estiveram há dias no local da nascente dois engenheiros e o subdelegado de saúde, senhor Dr. Cândido da Rocha e Sá, com o fim de procederem a estudos. Desejamos que a análise dessas  águas acuse propriedades medicinais que as tornem úteis para combater algumas doenças de que sofre a humanidade, e sejam um motivo de prosperidades para o nosso concelho e para o senhor Santos Sobrinho ver compensados os seus trabalhos e despesas.» Sobre esse caso nada mais se falou! // Nesse lugar existe uma capela, dedicada a Santo António, propriedade do citado Mário Monteiro; a 21/6/1936 realizou-se ali a festa a esse santo, atuando a charanga de Riba de Mouro.
     Existe nesse lugar uma pequena ponte, moderna, a qual liga Portugal a Espanha, neste caso concreto à Galiza. A ponte antiga foi destruída aquando da guerra civil espanhola (1936-1939). Houve também nesse lugar um posto da Guarda-Fiscal, comércio, sobretudo ilegal, designado contrabando, ou frota. Enfim, teve no passado algum movimento; agora, segundo consta, não vive ali ninguém. O comércio morreu, a Guarda-Fiscal acabou, as pessoas mais novas emigraram. 
       Ali, no rios Minho e Trancoso, pescavam-se noutros tempos belas trutas, e demais peixes saborosos. A barragem galega veio de certo modo empobrecer essa atividade.     

domingo, 18 de dezembro de 2016

DICIONÁRIO ENCICLOPÉDICO DE MELGAÇO
 
Por Joaquim A. Rocha 




Um crime passional

     Casaram em 1901, tinha ele 25 anos de idade e ela apenas dezanove. Gostavam um do outro desde catraios, apesar da diferença de idade. Ele fez a 4.ª classe na escola do ensino primário da freguesia e depois agarrou-se à enxada, como praticamente todos os rapazes do concelho de Melgaço. No entanto, como havia muitos homens seus conterrâneos a trabalhar no comércio na capital do país acabou por deixar a lavoura e tentar a sua sorte em Lisboa. Não levou a sua esposa para lá; o ordenado de caixeiro era muito baixo, não dava para pagar a renda de uma casa. Ele residia num quarto, num daqueles prédios velhos da cidade, onde não se pagava muito. Um dia, talvez o mais terrível da sua vida, alguém lhe diz que a mulher o traía. Não queria acreditar. A sua amada Emília, tão pacata, tão apaixonada por ele, traí-lo? Isso era impossível. Tentou esquecer, mas aquele sentimento mesquinho apoderou-se do seu cérebro. Um dia resolve tirar tudo a limpo; a sua vida tornara-se num inferno. As cartas dela eram sempre amorosas, cheias de esperança. Em 1902 nasceu-lhes um rapaz, todos diziam que era parecido com ele, sossegou; mas o diabo não lhe dava tréguas - os ciúmes, a falta de dinheiro para a levar para a sua beira, tornaram-no um homem à deriva. Já quase nem conseguia discernir. Que fazer? Comprou uma arma e partiu para a sua terra natal. Por volta das três horas da manhã entra em casa e dirige-se para o quarto, onde esperava ver a sua companheira a dormir, mas o que de facto viu nunca o saberemos, pois o sacerdote que redigiu o assento de óbito não o diz. Também não nos informa que tipo de arma usou. Os jornais da altura também não ajudam muito a esclarecer esta tragédia.  
     Seguem-se as biografias destes dois desgraçados, duas criaturas na flor da idade, cujos sonhos não conseguiram concretizar. A criança cresceu, graças ao cuidado de seus avós, casou, e teve geração.  
 
PASSOS, Emília. Filha de Manuel Ferreira de Passos, lavrador, natural de Penso, Melgaço, e de Marcelina Martins Peixoto, lavradeira, natural de Messegães (São Miguel), Monção, moradores no lugar de Paradela, Penso. Neta paterna de José Ferreira de Passos e de Mariana Esteves Cordeiro; neta materna de João Martins Peixoto e de Maria Luísa Fernandes. Nasceu em Penso a 26/5/1882 e foi batizada na igreja católica nesse mesmo dia. Padrinhos: José Esteves Cordeiro e Josefina Esteves Cordeiro, solteiros, rurais. // Lavradeira. // Casou na igreja a 15/7/1901 com o seu conterrâneo e parente António da Rocha, de 23 anos de idade, solteiro, camponês. // Faleceu a 8/6/1903, no lugar de Paradela, às três horas da manhã, «sendo assassinada», sem testamento, com geração, e foi sepultada no cemitério local.  
 
ROCHA, António. Filho de Matias da Rocha e de Benta Joaquina Rodrigues, lavradores, residentes no lugar de Paradela. Neto paterno de António José da Rocha e de Maria Caetana de Lucena; neto materno de João Francisco Rodrigues e de Mariana de Araújo. Nasceu em Penso a 9/12/1876 e foi batizado na igreja católica no dia seguinte (*). Padrinhos: Manuel Luís Esteves e sua esposa, Maria José Afonso, rurais, do lugar de Paradela. /// (*) Fora sopeado em casa pela madrinha. // Casou na igreja a 15/7/1901 com a sua conterrânea e parente Emília Ferreira de Passos, de 19 anos de idade, solteira, camponesa, filha de Manuel Ferreira de Passos e de Marcelina Martins Peixoto. // A sua esposa foi assassinada por ele próprio às três horas da manhã do dia 8/6/1903, no lugar de Paradela. // Ele morreu a 8 de Junho de 1903, logo a seguir à morte da mulher, por suicídio. Viera de Lisboa, onde trabalhava como caixeiro, propositadamente para a matar, provavelmente por o terem avisado de que ela o traía. Não fizera testamento, e foi sepultado sem pompa alguma num terreno reservado junto ao cemitério para esse efeito. Segundo a igreja católica, o suicida não tinha quaisquer direitos e ia diretamente para o inferno. // Com geração.

quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

ENTRE MORTOS E FERIDOS
(dois anos de guerra na Guiné-Bissau)
 
romance histórico
 
Por Joaquim A. Rocha 




14.º Capítulo


TERRA DA MORTE

 

     A tarde na capital do país estava cinzenta, ameaçava chuva e trovoada, e o Cândido sem vir. O que lhe acontecera? Não era costume esperar tanto por ele. De repente avista-o ao virar da esquina. Vinha apressado. Sentou-se e pediu desculpa pelo atraso. Explicou o que lhe tinha sucedido, nada de grave, coisas que acontecem.

   O amigo deixou-o descansar um pouco e depois perguntou-lhe:   

 
- Fizeram o percurso de Catió a Cufar ainda durante o dia? 

- Sim, mas chegámos à noitinha. Fomos recebidos em verdadeira apoteose. Não era caso para menos: íamos proporcionar a praças, sargentos e oficiais a sua colocação noutra zona menos perigosa, ou talvez o regresso à Metrópole se a sua prestação de serviço estivesse no fim.

- E as instalações, como eram?

- O quartel de Cufar, de quartel nada tinha! Tratava-se de velhas ruínas de um edifício, outrora uma fábrica de óleo de amendoim, rodeadas de arame farpado. A água para consumo e higiene era extraída de um fundo poço, mas a sua cor, cheiro e gosto, deixavam muito a desejar. Que saudades da água da minha terra: da Fonte da Vila, da Fonte do Vido, fresca e leve, sem sabor, sem quaisquer cheiros, com ela faziam-se refrescos divinais. Que saudades!

- Era mesmo o inferno!... – proclama Henrique, cheio de pena.

- Podes crê-lo. Camas… não havia! Dormia-se em colchões de borracha, os quais tínhamos primeiro de encher com o ar dos nossos pulmões: soprávamos, soprávamos, até ficarmos exaustos. Durante a noite acordava-se alagado em suor. O mosquiteiro de nada servia, visto não haver estrutura de suporte – as melgas assassinas tinham o seu alimento garantido.

     Os víveres e demais material chegavam de helicóptero ou avioneta; por transporte terrestre seria impossível – as perdas em vidas e bens seriam elevadíssimas. É que nessa zona vivíamos em beligerância permanente e feroz. Outra coisa, porém, não se esperaria, pois olhando para o mapa vê-se que Cufar se situa bem perto da República da Guiné, país que sem rebuço apoiava a guerrilha anti portuguesa.

- Compreende-se: queriam a África para os africanos negros – acrescenta Henrique, até ali silencioso e atento.

- Eu hoje também aceito em parte essa teoria, apesar de considerar que o planeta Terra é de todos, cada qual deve residir onde bem lhe agrada, se não prejudicar, claro está, os outros. Porém, nessa altura, quem sofria as consequências dessa ajuda éramos nós! Enfim! São coisas para esquecer.

     Na primeira noite que aí permaneci acordei deveras sobressaltado, meio sonâmbulo, com o barulho ensurdecedor dos obuses e canhões que do improvisado aquartelamento se disparavam para o interior da mata. Até dava a impressão de que se estava a travar uma guerra contra os fantasmas da noite que habitavam a floresta profunda!

     Os holofotes, colocados estrategicamente, iluminavam todo o terreno à volta, mas mesmo assim convinha prevenir.

- Mas, com tanta luz, davam ao inimigo a vossa localização!

- Não se pode dizer que estivéssemos à mercê do “infiel”, pois de dez em dez metros existiam abrigos subterrâneos (não como os actuais, cómodos e à prova de bombas atómicas), nos quais se encontravam soldados bem armados e de ouvido à escuta.

- E como é que comunicavam entre si?

- Em lugar do tradicional «sentinela à alerta» e «alerta está» ouvia-se o matraquear característico das metralhadoras G-3!

     Um episódio gravou-se para todo o sempre na minha mente: a fuga de dois prisioneiros através do arame farpado! Estávamos perante uma autêntica proeza, uma façanha inédita. Os tipos, apesar da pele rasgada e sangrando com abundância, fugiam velozmente pelo meio do capim em direção à mata. Pareciam lebres ou galgos! As balas das metralhadoras logo que nos apercebemos da fuga, buscaram, sôfregas, os seus corpos.

- Atingiram-nos?

- Nunca soubemos se escaparam ou não – quem se atreveria a transpor o arame para confirmar? Para lá da clareira era a floresta, e aí espreitava de forma permanente o perigo.

     De Cufar fazíamos regularmente incursões até à fronteira com a Guiné-Konacry. Pelo caminho, armadilhas colocadas aqui e ali iam ferindo, ou matando, alguns dos meus camaradas. Quando isso acontecia, improvisavam-se macas com ramos verdes e chamava-se, pela rádio, o helicóptero para levar as vítimas para o Hospital.          

     Os enfermeiros da Companhia, um cabo e dois soldados, por sinal muito corajosos, à excepção do furriel, que era um medricas, e cujos conhecimentos de enfermagem deixavam muito a desejar, raras vezes nos acompanhando, acudiam aos feridos consoante as suas possibilidades. Os nossos adversários aproveitavam esta situação algo confusa para iniciarem um ataque que, muitas vezes, durava duas ou três horas!

- Eles conheciam, certamente, muito bem o terreno – vocês não tinham hipóteses!

- Nenhumas! Numa dessas batidas, todos caminhando em fila indiana, eu ia em quarto lugar. De repente deu-se uma forte explosão. Fomos atirados em pirueta a metros de distância. Levanto-me, apalpo todo o meu corpo, e verifico que felizmente não tinha sido atingido por estilhaços. Os três da frente, entre eles o alferes Bizarro, não tiveram a mesma sorte. Os fragmentos das granadas inimigas, armadilhadas por hábeis mãos, alojaram-se profundamente nos seus frágeis corpos. Apelou-se de imediato ao helicóptero. O oficial, que integrara a Companhia já nós estávamos em África havia dois meses, soubemo-lo mais tarde, teve de ir para Lisboa, pois o seu estado inspirava cuidados.

- E quanto aos soldados?

- Um deles encontrei-o há pouco tempo, num desses almoços anuais: anda numa cadeira de rodas! Era um latagão. Mete dó.

- E o Estado dá-lhe alguma coisa de jeito?

- Uma miséria, segundo ele nos disse. Vai sobrevivendo!

     Bem, por hoje dou por terminada a narrativa, vem aí a noite, temos de ir jantar, amanhã é mais um dia de trabalho e de estudo.

- Se nos saísse a taluda não precisaríamos mais de trabalhar!...

- Essa só sai aos ricos, àqueles que jogam forte; de vez em quando compro uma cautela, mas nem a terminação!
//... continua.//

terça-feira, 13 de dezembro de 2016

OS NOVOS LUSÍADAS
(tentativa de continuação de Os Lusíadas, de Camões)
 
Por Joaquim A. Rocha
  
 

51

                           Albuquerque, o guerreiro temível,

Segundo vice-rei, conquistador,

Qual Alexandre, forte, terrível,

Torna-se da guerra o grão senhor,

O soldado perfeito, invencível,

Dando ao rei título de imperador.

E para que o mundo não o esqueça

Ergueram-lhe estátua por promessa.

 
52

 Malaca, Ormuz, a formosa Goa,

Passam a ser do reino português.

Foram orgulho da lusa coroa,

Mais importantes do que Ceuta e Fez.

            Estas praças, tão longe de Lisboa,

Tornam-se deles como o rio Vez.

E para que haja absoluta certeza

Semeiam lá a língua portuguesa.


53

 
O Lopo Soares de Albergaria,

Homem d’armas, terceiro vice-rei,

Devoto da mãe de Jesus, Maria,

Em Ceilão impõe a força, sua lei,

Feita de espada, de vil tirania;

E mais o que ele fez, nem eu sei.

Que interessa Colombo conquistar

Se logo depois a vai entregar?

domingo, 11 de dezembro de 2016

GENTES DE MELGAÇO
      (minibiografias)
 
Por Joaquim A. Rocha


ABREU, Leão José. Filho (bastardo) de Lourenço José Gomes de Abreu Coelho de Novais e de Bernarda Teixeira, solteira (casou mais tarde com Manuel de Sousa), moradora intramuros, no Bairro do Carvalho. Neto paterno de Domingos Gomes de Abreu e de Isabel de Faria; neto materno de Francisca Rodrigues. Nasceu em Melgaço no século XVIII. // Casou a 23/2/1767, com Maria Pereira de Araújo, filha de Domingos Tomás Pereira e de Sebastiana da Costa; neta paterna de Domingos Pereira e de Teresa de Araújo, de Braga, e neta materna de Vicente Domingos e de Maria Gonçalves, de Barro, couto de Paderne. // Foi depositário das sisas na vila e termo de Melgaço. Morou na Rua da Calçada (depois Largo José Cândido Gomes de Abreu – bisneto deste Leão José). Foi também correio-ajudante e teve estabelecimento comercial. // Faleceu na dita Rua da Calçada, já viúvo, a 15/4/1829. Seu corpo foi amortalhado em hábito de São Francisco e sepultado na capela da Senhora do Amparo, na igreja matriz, que ele elegera, sem ofício de corpo presente por ser em tempo proibido, que era sexta-feira santa. // Fizera testamento. // Deixou descendência da sua esposa e de uma amante, Jacinta de Araújo.

sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

SONETOS
 
Por Joaquim A. Rocha
 
 

O MENDIGO

(138)

 

Naquela rua vê-se senil mendigo,

Estendendo a mão, pedindo esmola,

Vestindo velha e curta camisola,

Exibindo seu bizarro umbigo.
 

Dizem que foi praga, duro castigo,

Por ter renegado a nobre escola;

Às costas carrega suja sacola,

Onde mete rijo pão sem presigo.

 
    Consta que fora outrora emigrante, 

Num país longínquo, envelhecido;

Onde arruinou saúde, sua vida.

 
Sem cabeça, perdeu dinheiro, amante,

Até um filho ficou lá esquecido…

 Resta-lhe agora a voz consumida.

 

quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

QUADRAS AO DEUS DARÁ
 
Por Joaquim A. Rocha





Quem “sabe” sobe

Na vida bem;

Quem malha pode

No zé-ninguém.

 
*
  
Sempre morderá quem tem

Os dentes de perro cão;

Por um lado ainda bem

Que os meus de bebé são.

 
*
 
Viraste as costas à vida,

Desiludido, descrente;

A vida nunca tem culpa,

A culpa é sempre da gente.

 
*

Se tenho cabelos brancos

Não é por razão da idade;

Ganhei-os no dia-a-dia,

À procura da verdade.

segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

JEAN LOUP PASSEK
 

 
    Jean-Loup Passek morreu no dia 4 de Dezembro de 2016, com 80 anos de idade. Nascera em Boulogne-sur-Seine, a 29 de Julho de 1936. // Era crítico de cinema, foi diretor editorial do «Dictionnaire Larousse du Cinéma», conselheiro para o cinema do «Centre Georges Pompidou», fundador e diretor do «Festival de La Rochelle», e também coordenador  da «Caméra d'Or», do festival de Cannes. Enfim, um homem dedicado ao cinema desde jovem, uma paixão que durou uma vida. // A sua ligação a Melgaço já vinha desde a década de 70 do século XX, quando filmava, nos arredores de Paris, um documentário sobre a imigração; nessa altura entrou em contacto com vários membros da comunidade portuguesa, entre os quais se encontravam dois melgacenses, naturais da freguesia de Paços. A amizade nasceu, cresceu, e Jean-Loup quis conhecer a terra dos novos amigos. Veio a Melgaço e ficou fascinado: as paisagens, o rio Minho, as freguesias quase medievais, a zona histórica da sede do concelho, a simpatia dos naturais, a comida, sobretudo o presunto de Castro Laboreiro, e de outras freguesias do concelho, o nosso extraordinário vinho verde, conquistaram-no. Melgaço era outro mundo, tão diferente da França desenvolvida, cosmopolita. Visitou algumas freguesias da montanha, como Fiães, Lamas do Mouro, e outras, e seus olhos não queriam acreditar naquilo que viam: ele imaginava-se no século XII ou XIII, na idade média, mulheres a transportar carvão em burros, as camionetas do Artur Teixeira, autênticas peças de museu, as feiras semanais. Disse aos amigos de Paços: «eu quero fazer alguma coisa para ajudar ao desenvolvimento de Melgaço.» E fez. Trouxe para a nossa terra um espólio que permitiu a criação do Museu de Cinema de Melgaço. Transferiu para Portugal tudo que pôde: inúmeros objetos, testemunhos, documentos, raridades da sétima arte, aparelhos do período do chamado pré-cinema, mais de cem mil fotografias, milhares de cartazes, livros, etc.


 
    E não satisfeito com tudo isso, comprou as ruínas do Cine-Pelicano, e ofereceu-as à Câmara Municipal de Melgaço para aí se construir a Casa do Cinema, onde se exibirão imensos filmes. 
     Em Setembro de 2016 foi distinguido com a medalha de mérito cultural, na Cinemateca Portuguesa, a qual lhe foi entregue pelo Secretário de Estado da Cultura, Dr. Miguel Honrado. 
      O prémio principal do Festival Internacional de Documentário de Melgaço Filmes do Homem tem o seu nome. 
       Eu nunca falei com ele, e tenho imensa pena, mas escrevi-lhe um dia uma carta a solicitar-lhe que se interessasse pelo filme «Serra Brava», inspirado no romance do nosso conterrâneo Miguel Ângelo Barros Ferreira (Melgaço, 1906; Brasil, 1996), cujo título é «Maria dos Tojos». Este filme, esquecido durante décadas, bastante danificado, foi finalmente recuperado pelos técnicos da Cinemateca Portuguesa, embora não cem por cento, como nós o desejávamos.            

sábado, 3 de dezembro de 2016


ESCRITOS SOBRE MELGAÇO
 
Por Joaquim A. Rocha






VI JOGOS FLORAIS
 

 

     Antes de mais nada quero expressar a minha solidariedade com a Ana Cristina (ver A Voz de Melgaço n.º 1013, de 1/9/1994, página 8). Ela tem razão: há crianças com muito jeito para o desenho (e para outras artes) e por vezes surpreendem-nos com a sua maturidade artística. O júri provavelmente esqueceu esse pormenor e fez um juizo precipitado – errou! Enfim, falhas que terão de ser corrigidas no futuro. Não partilho com ela a ideia de supostos «resultados pré-fabricados». Isso, não! Os prémios são tão insignificantes, os premiados tão secundarizados, que não justifica esse acto vil. A corrupção existe, ninguém o pode negar, mas não nestas coisas: seria simplesmente absurdo!

     Falemos de outros assuntos: da feira do livro, por exemplo. Das duas, uma: ou o vereador da cultura nunca assistiu a uma feira do livro, o que é gravíssimo para quem detém esse pelouro, ou então está-nos a vender gato por lebre! A feira do livro de que fala a Câmara Municipal resumiu-se a meia dúzia de livros expostos num minúsculo pavilhão; qualquer feira do livro digna desse nome tem dezenas ou mesmo centenas de pavilhões e milhares de obras! Que pobreza franciscana! Onde se encontravam os livros para vender, a variedade, a qualidade, os preços baixos?! Onde estavam as obras de autores melgacenses? Por que não se reeditaram os cadernos esgotados: «Pontes Romanas e Românicas de Castro Laboreiro»; «A Fortaleza de Melgaço: Pedras e Património»; «Manjares da Nossa Terra»? Por que não se estimularam outras edições? Por que não se convidaram as editoras a mostrar as suas novidades editoriais? Se querem dignificar o nome das festas terão de fazer melhor, de abandonar o envergonhado amadorismo.

     Tal como tinha prometido, vai iniciar-se neste número do jornal a publicação dos textos premiados (poesia e prosa). Quanto ao desenho e fotografia, esperemos que um dia a Câmara publique em livro esses trabalhos.

 

A Nau Melgaço

 
Melgaço é verde nau fora do mar.

Talvez por ter a serra como lastro!

Por bojo tem, de pedra, um velho castro,

E tem por vela um céu azul sem par!

 

Na proa, a Inês Negra, em quebra-mar;

A torre, tão altaneira, é o seu mastro;

Tomou por seu farol divino astro

E fez do Minho o cais para atracar…

 

A bordo, a Liberdade é capitão;

No próprio povo tem a guarnição

Que faz vogar a nau no seu espaço…

 

Das glórias do passado herdou o rumo,

E voga para o Futuro com aprumo,

Mostrando eterno orgulho em ser MELGAÇO!

 

(Raul Coentro – 1.º prémio)

 
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Viagens anuais de e para Melgaço
 

     Sonhei com Melgaço a chamar-me de todos os seus recantos, desde o vento fresco e húmido do Gerês, à brisa, às vezes morna, de Espanha, ao espaço muito antigo do castelo, fortaleza árabe, de ilustre história, mandado povoar pelo rei conquistador, que depois lhe deu foral e o elevou a concelho. Todos nós, com certeza, atendemos a este chamamento, não só da vila, como das dezoito freguesias do concelho, ao amarmos pedra a pedra, cantinho a cantinho, a nossa terra, lá no alto, onde Portugal começou há cerca de dois mil anos (*). E pronto, lá vou. Inicio, pela décima vez, a viagem a recordar pinheiros verdes, carvalhos, castanheiros, latadas de vinhas, igrejas e capelas, ermidas e campos. E assim vou bebendo …
 

M.ª Julieta Silva (2.º prémio)

 
     Nota: o texto continua, mas devido à sua narrativa não estar enquadrada num perfil de coerência e de interesse literário ficcional, achei melhor ficar por ali, retê-lo, dando ao leitor a possibilidade de imaginar o resto.      


     /// (*) É óbvio que a afirmação está errada, pois o país chamado Portugal nasceu do condado portucalense no século XII. Melgaço, sim, terá mais de dois mil anos; de acordo com a tese que eu defendo, teriam sido os fenícios que criaram esta povoação, cujo nome deriva certamente do deus dos fenícios, conhecido por Melkart, que esse povo antigo adorava.  

 

             Artigo publicado em A Voz de Melgaço n.º 1015, de 1/10/1994.