sexta-feira, 29 de setembro de 2017

ESCRITOS SOBRE MELGAÇO
 
Por Joaquim A. Rocha





 

     «Destinos» é o título de um maravilhoso livro escrito pela senhora professora Lydia San Payo. Penso que o seu objetivo principal ao escrevê-lo foi homenagear e perpetuar a memória de seu pai, o artista-fotógrafo Manuel Joaquim Alves, mais conhecido por Manuel Alves de San Payo, natural do lugar de Baratas, freguesia de São Paio, nascido a 15/4/1890 e falecido a 8/5/1974. Como esta obra não chegou a ser lançada nos circuitos comerciais, só alguns privilegiados (entre os quais me incluo) a possuem. Confesso-vos que já li muitos livros: uns agradáveis, outros assim-assim; este, pela maneira poética de escrever, de narrar, pela ternura que as suas páginas emanam, pela sua quase religiosidade, foi sem dúvida um dos livros mais interessantes que passaram pelas minhas mãos. Para mim foi uma surpresa, e uma revelação, este encontro com a vida e a obra de um melgacense que em quaisquer circunstâncias sempre soube honrar o seu nome e o nome da sua e nossa terra. É possível que alguns preconceitos subsistam relativamente à sua pessoa; contudo, a arte deverá estar acima de mesquinhas e efémeras paisagens ideológicas. É sob o signo da Arte e do Sublime que eu escrevo estas linhas sobre San Payo.

     Com dezanove anos de idade, juntamente com um vizinho, embarca no navio alemão ”Bahia”, rumo ao Brasil. «Não foram fáceis os primeiros tempos e o duro sobreviver no Rio de Janeiro», escreve sua filha. Mas também a vida na aldeia rural não era com certeza fácil. Os agricultores dependiam sobretudo dos produtos da terra e em maus anos agrícolas a miséria rondava-lhes a casa. Manuel Joaquim ainda frequentou o seminário antes de partir para a sua aventura americana, mas a sua vocação era outra – o espírito da arte tinha-se apossado do seu ser.

     O Brasil era o destino de muitos minhotos, o país das grandes oportunidades. Porém, o nosso conterrâneo tinha a alma de artista e os artistas não buscam o vil metal; em lugar de trabalhar como um mouro e aferrolhar como um avaro judeu, inscreve-se na Academia de Belas Artes do Rio de Janeiro e frequenta as aulas de desenho e de pintura. O seu emprego no «atelier» do patrício Bastos Dias, como retocador de chapas fotográficas, rasga-lhe horizontes no mundo do retrato artístico «que imagina poder ser feito como uma pintura». O seu nome artístico, San Payo, começa a ser conhecido. Como não tem sala de trabalho sua, e talvez cansado de andar a fotografar de casa em casa, certo dia dirige-se a Petrópolis. É aí que conhece a futura esposa, Erna, descendente de colonos alemães, fundadores dessa cidade brasileira. Manuel Joaquim tinha nessa altura 29 anos de idade. «Em 1918, chegado a Petrópolis, Manuel Alves de San Payo toma conta do atelier da fotografia situado na Avenida 15 de Novembro e instala-se na cidade…»

     Roído de saudades, a 27/10/1920, regressa a Portugal. Nesse ano ele e Erna passam o natal em casa de seus pais, em Melgaço «… um natal bem diferente dos quentes natais petropolitanos…» Em Janeiro de 1921 encontram-se em Lisboa e nasce-lhes a primeira filha, Ruth. San Payo trabalha sem descanso. Finalmente em Novembro de 1921 toma de trespasse, na Praça dos Restauradores, um ateliê, de sociedade com Manuel Carreira. Passados poucos anos já a fama lhe tinha batido à porta. Em 1924 expõe os seus trabalhos artísticos na Casa Castanheira Freire, à Praça Luís de Camões; no ano seguinte volta a expor, mas agora na Casa Aguiar, na Rua do Carmo. Foi um estrondoso êxito. O seu nome de artista-fotógrafo torna-se uma referência para a gente chique da capital. Em 1925, com o seu amigo Lourenço Fernandes, viaja pela Europa, visita os grandes museus «procura inteirar-se das novas tendências no domínio das artes.» Na cidade de Madrid expõe no Hotel Ritz «e teve boa aceitação por parte do público que ali acorreu». A Europa civilizada mostrou-lhe que a sua arte tinha valor e que a sua técnica estava na vanguarda do que de melhor então se fazia por esse mundo fora. Basta uma só fotografia para o provar: Erna com sua filha Ruth; verdadeira obra-prima!

     A 20/2/1930 é inaugurado na Praça Marquês de Pombal novo ateliê de San Payo, estúdio que eu próprio visitei nos finais dos anos sessenta. O bom gosto e o saber casavam-se naquelas decorações, naquele requinte de simplicidade e harmonia. Havia poesia em todas as coisas. Escritores, políticos, artistas, todos quiseram estar presentes nesse dia especial. O que muita gente não sabe é que o retrato oficial de Salazar, aquele que se encontrava nas salas de aula, e de Óscar Carmona, Craveiro Lopes e Américo Tomás, foram tirados por San Payo! Se o artista tivesse antes, na I República, adquirido a fama que depois teve, teria feito certamente o retrato de Manuel de Arriaga, de Teófilo Braga, de Bernardino Machado, Sidónio Pais, e de tantas outras figuras públicas. Para nós, melgacenses, o que conta é que San Payo soube como ninguém elevar a sua arte, enobrecê-la, aproximá-la estatutariamente das outras artes. Em 24 de Agosto de 1933 foi feito Cavaleiro da Ordem de Santiago de Espada. Não se envaideceu. Ironicamente comentou: «Tenho porém de ir levar lá cento e dez escudos, para poder usar daqui por diante penduricalhos ao peito».

     Em Julho de 1934 falecia, com trinta e sete anos de idade, a sua esposa. Deixava seis filhos: Ruth, Lydia, Nuno, Walter, Irene e Vasco, este último com apenas quinze meses de idade! Para San Payo foi um rude golpe. No ano seguinte, 1935, viaja até África, e aproveita essa magnífica ocasião para realizar o filme «O Primeiro Cruzeiro de Férias às Colónias». No Brasil já tinha realizado o filme policial «A Quadrilha do Esqueleto», «A Cabana do Pai Tomás» (tragédia), e «O Senhor de Posição», além de vários documentários. Esse filme foi projetado pela primeira vez no cinema São Luís, em Lisboa, no dia 29/6/1936. Seguiram-se várias exposições. A última ocorreu no Palácio Foz, em Março de 1950, e intitulou-a «Trinta Anos de Fotografia».

     Manuel Joaquim nunca esqueceu a sua terra. Logo que lhe foi possível mandou construir na freguesia de São Paio, em granito da região, uma casa de férias para si e seus descendentes, com adega e poço de água, e rodeada de pomar e vinha. A fama não lhe subiu à cabeça, como a tantos outros! Em 1968 quis ainda visitar essas Américas longínquas. Tinha família no Canadá e na Argentina e imensas saudades do Brasil – havia quarenta e dois anos de separação! Essas impressões de viagem, publicou-as no jornal Novidades, mais propriamente no seu suplemento Letras e Artes, com o título «Memórias de um Fotógrafo».

     Depois de muito viver, Manuel Alves de San Payo morre a 8 de Maio de 1974. É com mágoa que a autora de «Destinos» nos diz: «A notícia da sua morte, nesse tempo tão conturbado, não teve o realce que merecia…» Dorme o sono eterno no cemitério de São Paio, junto de sua querida esposa Erna Belger. O seu estúdio da Rotunda do Marquês já não existe; o edifício foi demolido e nesse espaço vê-se agora o Banco do Brasil. A arte cede perante o capital. «O espólio fotográfico do artista San Payo foi considerado património cultural nacional…» e encontra-se no Arquivo Nacional de Fotografia do IPPC.

     San Payo foi também um teorizador. Os seus escritos «A fotografia e o futurismo», «Como se deve encarar a crítica de arte», etc., provam isso mesmo. San Payo possuía mais um predicado que me é especialmente caro: escrevia poesia! Em «Destinos» encontra-se um magnífico poema seu dedicado à sua filha Lydia. Pouco conheço da sua obra, mas brevemente irei ao A.N.F. deliciar-me com ela.

     À sua filha Lydia San Payo agradecemos a oferta e o excelente livro que escreveu. Revela uma grande sensibilidade e cultura.

 

Artigo publicado em A Voz de Melgaço n.º 1022, de 1/2/1995.

quarta-feira, 27 de setembro de 2017

DICIONÁRIO ENCICLOPÉDICO DE MELGAÇO
 
Por Joaquim A. Rocha







Macróbios

// continuação...
 
FERNANDES, Maria Joana. Filha de --------- Fernandes e de -----------------------. Nasceu na freguesia de Penso por volta de 1803. // Lavradeira. // Faleceu a 22/7/1897, no lugar de Casal Maninho, com todos os sacramentos da igreja católica, com noventa e quatro anos de idade, no estado de viúva do seu conterrâneo Francisco Luís Rodrigues de Azevedo, sem testamento, com filhos, e foi sepultada na igreja.   
 

GOMES, Joaquim. Filho de Manuel Luís Gomes, lavrador, de São João de Sá, Monção, e de Maria Joaquina Gonçalves, lavradeira, de Penso, moradores em Rabosa. Neto paterno de João Manuel Gomes e de Maria José Alves de Sousa; neto materno de Manuel João Gonçalves e de Josefa Fontão Esteves. Nasceu na freguesia de Penso a 3/10/1888 e foi batizado no dia seguinte. Padrinhos: os seus avós paternos, rurais. // Casou na igreja de Penso, a 28/2/1954, com a sua conterrânea Maria Rodrigues. // Morreu em Penso a 9/3/1980, com noventa e dois anos de idade.    
 

LAMAS, Maria Joaquina. Filha de João Manuel Lamas e de Luísa de Castro. Neta paterna de Francisco da Lama e de Maria Rodrigues; neta materna de Domingos de Castro e de Caetana Alves Araújo, todos do lugar de Barro Grande. Nasceu na freguesia de Penso por volta de 1830. // Casou na igreja da sua freguesia natal a 15 de Setembro de 1856 com José António Garcia, filho de Francisco Manuel Garcia e de Ana Luísa Rodrigues Vilarinho, seu conterrâneo. // Faleceu na sua terra de nascimento a --/--/1933, com cerca de cento e três anos de idade (ver Notícias de Melgaço n.º 215, de 3/12/1933). // Deixou geração.
 
// continua...

domingo, 24 de setembro de 2017

GENTES DE MELGAÇO
 
Por Joaquim A. Rocha







UM HOMEM EMPREENDEDOR


ALVES, Manuel. Filho de António Joaquim Alves e de Maria Esteves, lavradores, roucenses, residentes no lugar de Paçô, freguesia de Rouças, concelho de Melgaço. Neto paterno de Francisco José Alves e de Carlota Joaquina Rodrigues; neto materno de Manuel Esteves e de Ana Alves. Nasceu em Rouças a 4/3/1911 e foi batizado na igreja católica a 12 desse mês e ano. Padrinhos: Manuel Alves, solteiro, camponês, da freguesia de São João de Sá, concelho de Monção, e Laurinda Esteves, solteira, camponesa, do lugar de Paçô, Rouças. // Por ter fugido aos carabineiros, quando levava contrabando, foi atingido com duas balas (*). Informa-nos o “Notícias de Melgaço” n.º 560, de 26/10/1941: «regressou a Melgaço Manuel Alves, de Paçô, Rouças, depois de lhe ter sido amputada uma perna no hospital de Ourense, em consequência de ter levado dois tiros.» (**) // Apesar disso, continuou a trabalhar com a mesma energia de sempre. // Casou a 25/11/1943, na capela da Senhora das Dores, sita em Cavaleiros, Rouças, com Virgínia de Jesus Guerreiro, filha de Manuel Guerreiro (Nelo de Cevide) e de Teresa Fernandes. // Foi proprietário de um talho na Praça da República, Vila, que adquiriu por trespasse a António Augusto do Paço (NM 896, de 17/4/1949) e de uma Pensão (restaurante) e talho na Rua do Rio do Porto, SMP, cujo prédio – fronteiro à Pensão Braga – comprou ao advogado, Dr. Artur Anselmo, e sua esposa, o qual reconstruiu em 1958 e para ali mudou o talho em Junho de 1959, e ali fixou residência com a sua família. // Em 2002 ainda estava vivo, mas já não reconhecia as pessoas. // No verão frequentava - juntamente com os seus familiares - a praia de Moledo. // Era um homem bem disposto, conversador, amigo do amigo. // Morreu na freguesia da Vila, SMP, a 25/11/2004, com noventa e três anos de idade. // Pai de um filho (Aristeu) e de duas filhas.
 
     /// (*) As balas atingiram as duas pernas, mas uma delas teve de ser amputada devido à bala da carabina ter ficado aí alojada e fragmentado.
 
     /// (**) Existe outra versão dessa história: Manuel Alves e os outros contrabandistas rodearam o carabineiro e tentaram tirar-lhe a arma e desancá-lo; o espanhol, vendo-se acossado, disparou para as pernas do mais aguerrido, precisamente o Manuel, obrigando os companheiros a pôr-se em fuga, ficando com o ferido apenas a sua irmã. Outros carabineiros apareceram e decidiram pôr fim à vida do baleado, mas a irmã protegeu-o com o seu próprio corpo; então eles levaram-no para Ourense, no comboio, a fim de ser tratado. Não nos esqueçamos que a guerra civil espanhola tinha acabado há pouco tempo e em 1941 estava a decorrer a 2.ª guerra mundial.  

quinta-feira, 21 de setembro de 2017

ENTRE MORTOS E FERIDOS
 
romance
 
Por Joaquim A. Rocha 





// continuação...

- A que se refere concretamente? – pergunta o jovem, algo perturbado.

- Refiro-me aos africanos das antigas colónias. Muitos deles, milhares, depois da descolonização e independência, refugiaram-se em Portugal e por aqui vão permanecendo, desenraizados. Em Lisboa e arredores: Almada, Amadora, Odivelas, Sacavém, Loures, eu sei lá bem, e até um pouco por todo o país, instalam-se em barracas e habitações degradadas, desta maneira aumentando incomensuravelmente as dificuldades dos municípios em termos de habitação e segurança, não falando já na estética. Vieram também gerar inúmeros problemas sociais: são as escolas, os centros de saúde, os hospitais, que vêem em pouco tempo aumentar o número de utentes; são os empregos que faltam; o crime que cresce dia a dia; são os seus costumes que chocam, colidem, com os dos autóctones; o problema da língua, pois a maioria não falava, por incrível que isso pareça, português. Por outro lado, as mulheres africanas dão à luz um filho praticamente todos os anos e durante vários anos. Isso significa que dentro de vinte ou trinta anos Portugal não terá capacidade económica para assegurar a toda a população um nível de vida adequado. E a Segurança Social? Aguentar-se-á com tanta despesa?

     Será novamente a emigração, a debandada para outros países mais ricos? Mas como, se as novas tecnologias reduzem o número de operários? Será que a Alemanha, a França, a Suíça, precisam de mão-de-obra portuguesa?! Qualquer dia nem o Canadá, ou os Estados Unidos, necessitarão de operários estrangeiros.

       Henrique, embora reconhecendo algumas verdades no raciocínio de Cândido, não quer dar o braço a torcer, e replica:

- O meu amigo Cândido é um pessimista. Traça e prevê um futuro apocalíptico, catastrófico, para Portugal. Não acha que os portugueses poderão um dia emigrar para esses novos países africanos? Eles vão precisar de mão-de-obra especializada, de tecnologia, de engenheiros e arquitectos, de professores, de médicos, enfermeiros…

     Cândido não se dá por vencido com esse argumento:

- Só o amanhã o dirá, só o amanhã o dirá… Mas não te esqueças de que outros países mais poderosos do que o nosso, tais como a China e o Japão na Ásia, os Estados Unidos na América, a Inglaterra, Alemanha e França na Europa, Rússia etc., com outros recursos, quer científicos, quer tecnológicos, aguardam com extrema paciência, e perspicácia, a oportunidade para entrarem com armas e bagagens nesses territórios africanos, recentemente elevados a Estados.

- Haverá lugar para todos. O Cândido revela uma pontinha de racismo!

- Não! De modo algum. E penso que o povo português, de uma maneira geral, também não o é. A prova disso consiste no facto de diariamente: nos transportes públicos, nos centros comerciais, nos cinemas, em todo o lado, convivermos com indivíduos de outras raças não os hostilizando. Além disso, o nosso Governo e a nossa Assembleia da República nunca legislaram no sentido de expulsar estrangeiros do solo pátrio, mesmo aqueles que o mereciam. Mais: já começa a ser vulgar vermos rapazes negros a namorar com raparigas de raça branca, e vice-versa. Olha que no continente africano é quase um fenómeno assistir-se a isso. Crê-me: reconheço que era difícil a esta gente permanecer em Angola, Moçambique, São Tomé e Príncipe, Guiné e cabo Verde, depois da descolonização.

- Posso saber por quê?

- Por duas razões fundamentais: a primeira porque muitos deles estavam demasiado ligados, de uma forma ou de outra, ao regime salazarista para não virem a sofrer retaliações, represálias, por parte dos Partidos que ascenderam ao poder; a segunda, porque os restantes, não quiseram participar num conflito entre irmãos, ou seja, na guerra civil (casos de Angola e Moçambique). Quanto a Cabo Verde, como sabes trata-se de um país muito pobre, sem grandes riquezas no subsolo, sem chuvas normais, pouco desenvolvido. Quando conseguirem, com a ajuda da tecnologia estrangeira, tornar a água do mar potável, então sim, esse arquipélago poderá crescer economicamente. Enquanto aguardam essa ajuda terão de viver quase exclusivamente da emigração.

- O meu amigo Cândido omitiu o povo de Timor. Também temos alguns timorenses em Portugal.

- Sim, ia-me esquecendo deles. De qualquer modo, o seu número não é significativo e pelo que tenho observado logo que lhes seja possível regressarão à sua pátria. Por outro lado, estão muito próximo da Indonésia e da Austrália, pelo que a influência desses países far-se-á notar de imediato, e eles, pouco a pouco, irão esquecendo Portugal.           

// continua...

segunda-feira, 18 de setembro de 2017

QUADRAS AO DEUS DARÁ
 
Por Joaquim A. Rocha





Olhou pra mim e sorriu,

Tal Mona Lisa de agora;

Eu sei que me confundiu,

Por isso se foi embora.

*

Falei com a natureza

Numa noite de luar;

Inda lhe resta beleza,

Mas em vias de findar.

*

Falei com a natureza,

Achei-a muito doente;

Olhou pra mim com tristeza,

Fugiu assim de repente.

*

Eu sou assim como sou,

Não podia deixar de o ser;

Não sei quem me modelou,

Se o fez com algum prazer.

sexta-feira, 15 de setembro de 2017

SONETOS DO SOL E DA LUA
 
Por Joaquim A. Rocha






 
Naquela cama triste de hospital,

Esperando uma milagrosa cura,

Fugindo da parca, da sepultura,

O doente espera vencer o mal.

 
O esforço da medicina é colossal,

Médicos não se cansam na procura…

Querem evitar o fim, a rutura,

Matar a besta, seu olhar letal.  

 
Jorra pelos brancos lençóis o sangue,

Litros de soro percorrem as veias;

O pobre paciente está exangue…

 
Ao longe já cantam belas sereias,

Embriagadas com haxixe, bangue, 

Esperando, sedentas, lautas ceias.

 
 

 

 
 

 

 

terça-feira, 12 de setembro de 2017

OS NOVOS LUSÍADAS
(tentativa de continuação de «Os Lusíadas» de Camões)
 
Por Joaquim A. Rocha 
 
 

 
Introdução

 
      Certo dia, como se fora um qualquer lunático, passou-me pela cabeça continuar «Os Lusíadas», obra escrita por Luís Vaz de Camões no século XVI. Se ele, em circunstâncias assaz difíceis, sem a preciosa ajuda dos computadores e seus programas, sem livros de história ali à mão, sem dicionários, sem enciclopédias, sem nenhuma biblioteca de apoio, conseguiu levar a cabo aquela imensa epopeia, aquele monumento literário, aquele alforge de saber e imaginação, também eu, ser humano como ele, poderia construir algo parecido. Acontece que génios como Camões só surgem no planeta de cem em cem mil anos; logo, teremos muito que esperar. Os seus vastos conhecimentos, a sua capacidade de apreender tudo aquilo que o rodeava, as suas leituras da juventude, a sua vivência, a sua escrita empolgante, são irrepetíveis. Apesar de saber tudo isso, vou dar início a este louco empreendimento, sabendo de antemão que vai ser obra pequena, defeituosa, inacabada. A vida é assim, não se pode parar. Eça de Queirós e Camilo Castelo Branco na prosa, Amália Rodrigues no fado, Travassos e Eusébio no futebol, Livramento nos patins, Joaquim Agostinho no ciclismo, Carlos Lopes e Rosa Mota no atletismo, etc., foram figuras cimeiras na sua arte, na sua profissão. No entanto, outros artistas foram bons, ou aceitáveis, sem contudo atingir a perfeição dessas estrelas. «Parar é morrer», já diziam os nossos antepassados. Por isso, mãos à obra. A história de Portugal é riquíssima, há muita matéria-prima a explorar. Quem sabe se esta ousada iniciativa não irá estimular alguém com mais talento e saberes do que eu. Aguardemos.     
 
     Este ciclópico trabalho tem como balizas a chegada a Portugal de Vasco da Gama, finais do século XV, mais concretamente em 1499, e o 25 de Abril de 1974. Camões serviu-se das crónicas, de relatos de alguns marinheiros experimentados, da riquíssima mitologia, dos deuses e deusas, retirados dos panteões grego e romano sobretudo, para compor os seus versos; eu também recorrerei à mitologia, mas em pequena escala, em pequenas doses, pois os tempos são outros, as mentalidades mudaram, ninguém pode parar a história, as divindades dormem agora sossegadas nos seus leitos celestiais. O que ontem foi sério e agradável, tornar-se-ia ridículo em nossos dias. Já quase ninguém acredita em seres imateriais, pairando sobre as nuvens, cavalgando estrelas imaginárias. O materialismo, a ciência, apoderou-se das nossas mentes, mudou os nossos hábitos, fez-nos ver as coisas por outro prisma. O regime capitalista domina o planeta já há alguns séculos, o consumo é o objetivo principal da humanidade. Todos desejam ardentemente ter carro, casa na cidade e na praia, gozar férias no estrangeiro, todos os bens e vícios possíveis e imaginários, quantos deles inúteis e até perniciosos.

    Estes “Novos Lusíadas” do século XXI serão marcados pelo confronto entre as histórias oficiais. Tudo aquilo que alguns historiadores nos impingiram será posto em causa. A história não é, nunca será, uma crença, mas sim uma objetividade. Os factos aconteceram, ninguém o pode desmentir, mas a maneira de os narrar é muitas vezes diferente de historiador para historiador. A história é desde há séculos uma ciência, rege-se por padrões diferentes da poesia, pura arte, mas nem a ciência nem a arte podem inventar a verdade, esta surge por si mesma, apesar de mascarada, ou dormindo no enigmático limbo. De qualquer modo, os Lusíadas, quer os de Camões ou os meus, jamais serão história, mas a descrição de um tempo, de uma época, vivida, ou ensaiada, pelos naturais de um país chamado Portugal. É certo que nem todos os portugueses foram heróis, cientistas, ou “santos”; a maior parte deles foram sobretudo mártires de regimes ditatoriais, da fome, doenças e vários infortúnios. Nunca foi fácil ao povo singrar, quer na monarquia (absolutista ou liberal), quer na primeira república, muito menos na ditadura militar ou no regime corporativista de Salazar e Caetano, ou seja, no auto designado Estado Novo. O povo inculto, trabalhador, quase escravo, sobreviveu ao longo dos séculos quase nos limites. Foram recrutados para os chamados descobrimentos, para as diversas guerras, quer em África, quer em vários países desta velha Europa, para os trabalhos duros e mal remunerados do campo, da fábrica, das obras públicas e privadas, mas nunca para se sentar na mesa dos poderosos. Alguns, poucos, foram trepando, à custa de muito engenho e arte, tornando-se, quase todos (?), autênticos carrascos, vingando-se desse modo dos tempos de pura miséria.     

     A guerra colonial foi terrível para o nosso país; treze anos de lutas intensas, várias mortes e milhares de feridos, doenças do foro psiquiátrico, eis o balanço desses malditos, tenebrosos treze anos. Salazar e Caetano, sobretudo o primeiro, poderia ter evitado o conflito; mas não quis. Não sei se mal aconselhado, ou agindo subjetivamente, provocou, com o seu acto irrefletido, no país, uma onda gigantesca de terror e medo, obrigando imensos jovens a fugir para o estrangeiro, deixando muitos concelhos quase só com idosos. Quanto a mim, na História de Portugal deve figurar como um criminoso, da mesma estirpe de Franco, Mussolini e Hitler, entre outros terríficos ditadores. Nunca lhe teria passado pela cabeça que mais cedo ou mais tarde as colónias portuguesas obteriam a independência, tal como as colónias de outros países? Mumificou, o homem! Ou pensava que os negros, por terem essa cor, eram parvos e inócuos? O 25 de Abril de 1974, o derrube do regime do Estado Novo, a independência das colónias, veio arrumar a Casa Portuguesa. Portugal Continental, as Ilhas dos Açores e da Madeira, são o nosso verdadeiro país. Falta-nos, é certo, Olivença, desde 1801 em poder da Espanha, mas se calhar agora já é tarde para a recuperarmos ou mesmo para a reivindicarmos.

     Uma das coisas que quero chamar a atenção do leitor é para o facto deste poema ter apenas cerca de metade das estrofes de «Os Lusíadas». A epopeia de Camões contém mil cento e duas estâncias  (oito mil oitocentos e dezasseis versos), metade delas relacionadas com a mitologia grega e romana. Eu adoro mitologia, mas penso que no século XXI não faz muito sentido utilizá-la com a mesma pujança com que Luís Vaz a usou.              
 


Prólogo

 
 1

 
Cantarei de novo os portugueses,

Ilustrarei seus actos grandiosos,

Sem os defeitos que quantas vezes

Surgem aos olhos de outrem odiosos;

Não tomarei como exemplo ingleses,

Nem tão pouco outra raça d’orgulhosos.

Exaltarei o brio da nossa gente,

Seja forte, alegre ou dolente.

2
 
Cantarei escritores, cientistas,

Médicos, enfermeiros, enfermeiras,

Os camponeses, os retratistas,

Os operários e lavradeiras…

Não cantarei os malvados farsistas,

Nem as odiosas alcoviteiras.

Cantarei o povo são, verdadeiro,

Excluindo o mau, o desordeiro.

3

Os empregados de mesa, bancários,

Todos que trabalham honestamente;

Cozinheiros, os bons funcionários,

Povos das ilhas e do continente…

Não cantarei os reles mercenários,

Os parasitas sem alma nem mente.

Cantarei os músicos, os pintores,

Artistas de cinema, varredores.
 
// continua...

sábado, 9 de setembro de 2017

POEMAS DO VENTO
 
Por Joaquim A. Rocha




Os mendigos crescem absurdamente

nesta cidade, nesta Lisboa cosmopolita!

 

Tu, ó cidade, permites

que as tuas ruas tão estreitas,

os teu passeios acanhados,

estejam atravancados, pejados,

de mendigos?!

Tu, ó Lisboa antiga,

cheiinha de tradições,

consentes que a tua beleza

seja conspurcada pelo cheiro

nauseabundo das feridas

cancerosas desses outros deserdados?

Tu, ó cidade dos poetas, dos heróis,

dos beatos, permites que nas tua ruas

seres humanos se arrastem como vermes?

Seres que poderiam ter sido heróis, poetas ou beatos?!

Oh!... cidade da desilusão.

Oh!... cidade do desespero!

 

Sede do Banco de Portugal,

da Caixa Geral de Depósitos,

do Ministério das Finanças,

do Ministério da Justiça,

do Ministério da Cultura;

sede da miséria encoberta,

da prostituição e chulice,

da droga e do alcoolismo,

sede de tudo e de todos,

sede do ódio, da intriga, do amor,

sede de vingança e sede de justiça.

 

Lisboa cidade, o teu ventre rebenta!

O teu peito estala; o teu coração pára.

 

 Cidade mãe e cidade madrasta.

Já era tempo de dizeres: basta!

 

Tu és a cidade das revoluções,

tu és a cidade jardim,

tu és a cidade museu,

tu és a cidade, cidade!

 

Não podes ser a cidade fantasma,

a cidade mistério,

a cidade miséria,

a cidade das contradições.

 

Tu és a cidade da luz,

não podes ser a cidade da sombra!

 

Limpa as tuas vestes,

 põe água de colónia e sai à rua.

Passa pelas Ruas Augusta, Garrett,

Áurea, e tantas, tantas outras!

Tropeçarás, como eu, nas pernas

lázaras, nas chagas imundas, nos

braços estendidos mecanicamente!

Visita o Rossio, esse local

histórico, e verás a miséria

que ele alberga!

 

Lisboa prostituída,

Lisboa de alguns,

liberta-te, libertando!

 

 

18/6/1978   

quarta-feira, 6 de setembro de 2017

MELGAÇO E AS INVASÕES FRANCESAS
 
Por Augusto César Esteves







// continuação...

     Cioso como era da jurisdição real e porque de um abuso se tratava, não se admira a rapidez de D. Dinis para cortar, ainda neste ano de 1307, de uma única tesourada, não só nesta Vila, mas em todo o Alto-Minho, os voadouros do bispo de Tui, nosso prelado de então. Porque e como o fez, sem apresentar protestos nem trocar notas diplomáticas com o mitrado galego, di-lo esta pequena carta régia da sua Chancelaria:

     «D. Dinis, pela graça de Deus rei de Portugal e do Algarve, a vós, juízes e justiças de Melgaço, e de Pena da Rainha, e da Terra de Valadares e de Monção, e de todas as outras terras dos meus reinos, saúde. Sabei que eu fui informado pelos meus tabeliões dessas terras de Melgaço e de Pena da Rainha e de Valadares e de Monção que o bispo de Tui fez tal postura e tal constituição em seu Conselho Geral que todos os clérigos dos meus reinos que pertencem ao seu bispado, tanto os priores como os abades, como as abadessas, como todos os outros prelados, sob pena de excomunhão se não fizessem cartas, nem prazos, nem instrumentos, nem outras escrituras de servidão, senão pelo seu notário da cidade de Tui, e que antes confirme os priores e os abades e as abadessas, e os outros prelados que são dos meus reinos, fazem-nos jurar sobre os santos evangelhos que não façam nenhuma das ditas escrituras senão pelos seus notários de Tui. Porque ele, isto não podia fazer de direito e o faz contra a minha jurisdição maiormente que os clérigos do seu bispado que são do meu senhorio apelaram desse bispo para o papa sobre isto, e por outros agravamentos que lhes fazia, porém mando e tenho por bem que as escrituras que os notários do bispo de Tui fizeram não valham nem façam fé perante vós nem em todo o meu senhorio. E mando a todas as justiças das minhas terras, sob pena dos corpos e dos haveres, que guardem e façam guardar esta minha carta e que a façam publicar em seus concelhos. E mando aos tabeliões que a registem em seus livros. Dada em Coimbra no 1.º dia de Dezembro, el-rei o mandou, Martinho Lourenço a fez. Era M.CCC.XLV anos      

   Não andam nos livros de História grandes referências sobre as distracções preferidas por D. Dinis e no entanto não deixaria de se apurar a sua propensão para o jogo. Para essa monografia, dou eu uma achega sacada da história de Melgaço. Ei-la: com os juízes e concelho de Melgaço, jogou ele o rapa, pois lhe deu por carta de 25/2/1312 a terra de Valadares como alfoz, mediante o pagamento de trezentas libras pelos seus foros e direitos e em 1/6/1319 lha retirou da sua jurisdição por tal avença só forjar questões, como ele o disse por estas palavras:

   «E eu vendo isto por partir contenda e demanda que entre eles havia por razão dos juízes que o concelho de Melgaço havia a meter e irem todos a seu julgado pelos direitos que haviam de tirar em essa Terra de Valadares fazendo-se aí uns aos outros muitos agravamentos. Tive por bem de lhes fazer aí mercê e quitei aos de Melgaço as ditas trezentas libras que me haviam de dar pela dita Terra de Valadares e filhei-a em mim

   Curto é este extracto e pena é, decerto - dirão alguns leitores – não se publicar já na íntegra a última carta dionísia e, efectivamente, pena é, só pelo que se mostra da grandeza do termo e deixa entrever do bairrismo dos valadarenses, mas estes e os estudiosos do passado melgacense poderão ler no Apêndice, entre outros, estes documentos da chancelaria de D. Dinis. // Mas nestes muros há um grupo de pedras na mesma fila reunidas pelo destino, para falarem à alma melgacense só do reinado de D. Afonso IV. Quatro são elas para contar, cada uma, seu feito diferente. Uma parece dizer: - Eu sou velhinha, muito velhinha mesmo. Nesta face alisada pelo canteiro o musgo de tantos séculos já me cavou rugas fundas e, à força de viver, já também sinto o cansaço da memória; mas o melgacense pode ainda hoje reviver comigo aquelas horas frenéticas de trabalho e frenéticas de entusiasmo, que precederam a guerra com Castela.

     Foi em princípios de 1336 que D. Afonso IV fez o apelo no reino e Melgaço a ele respondeu. O concelho, segundo as listas organizadas, convocou logo os cavaleiros vilãos, os lanceiros e, quiçá, o corpo de besteiros do termo, tantos quantos devia fornecer à hoste e o alcaide-mor preparou bem a resistência, aprovisionando a praça de munições e de vitualhas, acabando por enchê-la com a sua gente de guerra. Rui de Pina não o diz expressamente, porque os cronistas do seu tempo tanto não esmiuçavam, mas pelas palavras da Crónica de el-rei D. Afonso o quarto, isso se infere, como vereis:

   «...logo com grande pressa foram cartas e mandados pelo reino que todos com mais gentes que pudessem e com cavalos e armas se percebessem e estivessem logo prestes até um dia certo, e assim mandou a todos os alcaides e cavaleiros dos Extremos que logo com todo o mal e dano assim começassem a guerra contra Castela e naturais dela, matando, roubando, e queimando, e cativando, assim como contra inimigos mortais, porque por tais os tinha, e sobre isso mandou logo velar e roldar (rondar) as suas Vilas e castelos, e acalmá-los, e provê-los de mantimentos e armas e gentes, e de tudo o mais que cumprisse para cercos e para quaisquer outras necessidades de guerra se lhe sobreviesse e logo mandou...»

   Diz outra: …

      Tudo isto, anda nos livros; questão é perscrutá-los com interesse e carinho. Foi no estio desse ano de 1336 que, à ordem de el-rei, o seu irmão D. Pedro, conde de Barcelos e autor do nosso primeiro livro de linhagens, cobriu de tropas toda a fronteira do rio Minho. Isso fez com as «gentes das comarcas de Entre Douro e Minho, e Trás-os-Montes», e como no termo daquelas se inclui esta vila tenham por certo estarem no grosso das tropas reunidas em Valença, à volta do quartel-general estabelecido no convento de Ganfei, toda a gente convocada nos começos do ano, ou quantos mais não fossem, os reguengueiros de Melgaço, bisonhos, talvez, mas animosos e preparados para a toda a hora entrarem pela Galiza a dentro. // E esse momento chegou quando o arcebispo de Santiago, fronteiro da Galiza, e Rui Pais de Bania, adiantado ([1]) galego, puseram o seu exército em marcha na esperança de encontrarem desprevenido e despreocupado o capitão português. Avisado desta marcha, D. Pedro vadeou as águas do Minho com sua hoste e foi ao encontro do inimigo: poucas horas gastou para o encurralar no castelo da Entença e três dias lhe chegaram para queimar e devastar toda a Galiza, desde La Guardia até Santiago, «…onde fez muito dano com roubos, e mortes, e cativeiros de muitos que trouxe a Portugal com grande honra, e bom nome que o conde Dom Pedro nesta frontaria ganhou, porque houve nela resistências, e pelejas com o arcebispo de Santiago que era o fronteiro, e com outros senhores daquelas partes, dos quais alguns desbaratou, e pôs em fugida, e outros cercou com muito esforço, e preitejou ([2]) como quis

// continua...

[1] Fronteiro-mor.
[2] Preitear, ajustar, pactuar, combinar, contratar.